Mia Couto fala da influência de Guimarães Rosa na sua prosa poética e conta que seus livros surgem a partir dos personagens em entrevista concedida à Carta Capital.

“Foi um abalo sísmico.” Assim o escritor moçambicano Mia Couto define o encontro com os primeiros textos de Guimarães Rosa – mais especificamente, com os contos de Primeiras Histórias. Mais ainda, com A Terceira Margem do Rio. Foi observando como o escritor mineiro plasmava a oralidade do sertão para o texto literário que Mia percebeu o quanto sua própria prosa, impregnada de elementos da oralidade do universo rural moçambicano, poderia levá-lo longe. Mia Couto esteve em agosto no Brasil, temporariamente afastado de seu cotidiano como biólogo, para lançar Antes de Nascer o Mundo, sétimo romance de sua autoria publicado no Brasil.

Antes de desembocar na Biologia, onde trabalha desenvolvendo estudos de impacto ambiental, Mia quis ser médico-psiquiatra, buscando “conhecer melhor aquela fronteira entre a sanidade e a loucura”. Sufocado pelo ambiente prisional dos hospitais, encontrou solo fértil nas redações de jornais moçambicanos, para onde fora designado pela Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) para se infiltrar. Eram tempos difíceis, de guerra civil, que consumiria 16 anos da vida do país recém-liberto e surgiria como pano de fundo para Terra Sonâmbula, seu primeiro romance, publicado em 1992. Nesta entrevista, concedida a Ricardo Prado, o escritor fala da influência dos autores brasileiros em sua literatura, de como os personagens governam suas histórias e, até, adianta o tema do seu próximo livro.

Carta Capital: O seu início como autor, pela poesia, impregnou a sua prosa?
Mia Couto: Eu creio que nunca saí desse universo da poesia, sou um poeta infiltrado no mundo da prosa, contando histórias pelo uso da poesia. Eu a uso não apenas como gênero literário, mas como um certo modo de olhar, uma sugestão de outra lógica que só pode ser vista por ela.

CC: E quando houve a opção pela prosa para o senhor escrever Terra Sonâmbula, seu primeiro romance?
MC: Porque, numa certa altura, eu achei que precisava contar algumas histórias, que eram tão poéticas, tão carregadas da oralidade daquele universo rural moçambicano, onde se coloca de uma maneira diferente essa diferenciação entre prosa e poesia. Há ali outro modo de se olhar, de sentir o mundo, que passa quase sempre pela realização da metáfora. Então, eu percebi que, se eu conseguisse tomar pra mim essa oralidade do mundo rural, conseguiria contar histórias em prosa.

CC: Este se parece com o caminho trilhado por Guimarães Rosa, que é um escritor com o qual sua prosa estabelece um diálogo evidente. Houve essa influência?
MC: Eu publiquei minhas primeiras histórias sem conhecer Guimarães Rosa, que vim a conhecer por meio de Luandino Vieira, um escritor angolano muito influenciado pela prosa dele. Eu li uma entrevista na qual Luandino declarava essa influência. E havia nessa época, em Angola e Moçambique, uma procura pela oralidade na literatura que já havia acontecido no Brasil, especialmente pelo Guimarães Rosa. Como estávamos em guerra, não tínhamos contato com o Brasil, mas um amigo me trouxe uma cópia, em xerox, do livro Primeiras Histórias. Marcou-me especialmente (o conto) A Terceira Margem do Rio. Aquilo foi um abalo sísmico na minha alma, porque ali estava o que eu e outros estávamos procurando. Havia ali não só uma relação com a língua, mas também com outras coisas que estão para além dela, uma tentação de criar na linguagem um universo próprio, como se a linguagem se apropriasse da história, da geografia, criando outra realidade. E essa outra realidade também era importante para nós, que estávamos vivendo a lógica de um estado centralizador, que esmagava as lógicas rurais, esse mundo do sertão, que não é da ordem da geografia, mas da soma de várias culturas. A leitura de Guimarães Rosa foi para mim como um rasgão. Grande Sertão: Veredas é aquele livro ao qual se regressa constantemente, capaz de retratar um mundo inteiro.

CC: Como soa, aos ouvidos de um moçambicano, a oralidade captada por Guimarães Rosa?
MC:  Há uma coisa aqui que tem de ser procurada na história. O português falado no Brasil tomou muita coisa da África. A colocação do pronome reflexo que se faz aqui, por exemplo, é semelhante à nossa, e diferente da que se faz em Portugal. As línguas africanas provocaram algumas mudanças no português que eu reencontro no Brasil, é uma coisa que está além da literatura e tem origem na presença africana em vosso país, que foi capaz de remoldar a língua portuguesa. E isso está a acontecer agora em Moçambique, pois, quando houve a independência, em 1975, uma pequena minoria falava português. Hoje já é falado quase por toda a gente em Moçambique. Em Angola, já se tornou a língua hegemônica e, com isso, nos dois países, as línguas indígenas estão em rápido processo de desaparecimento. Esse assalto ao português faz-se como um namoro, de uma forma muito pouco complexada. As pessoas inventam palavras sem inibição nenhuma, sem se preocuparem se está correto, se está “na norma”. E esse é um momento muito feliz para um escritor, observar o nascimento das palavras.

CC: Como nasce um novo romance? Terra Sonâmbula, por exemplo, foi motivado por um desejo de falar sobre a guerra civil em Moçambique?
MC: O caso deste livro teve algo que não se repetiu depois com os outros. Eu tinha a consciência, que depois se revelou errada, de que não conseguiria escrever sobre a guerra em meu país enquanto ela estivesse acontecendo. Só que ela durou 16 anos e, contrariamente ao que pensei, comecei a escrever Terra Sonâmbula ainda em tempos de guerra, dois anos antes do seu término. Quando acabei o livro, estavam começando as negociações que conduziriam à paz. E eu senti que essa foi uma necessidade de resistência, porque a violência provocada pela guerra tinha um efeito de, em determinado momento, muitos pensarem que aquilo não tinha saída, não havia futuro mais para Moçambique.

CC: O senhor chegou a pensar que seu país fosse mergulhado na guerra civil, como aconteceu com o Sudão e a Etiópia?
MC: Nós pensamos sim, pois as guerras na África têm uma tendência a se eternizar. Moçambique provou ser um caso de exceção e até hoje nem nós conseguimos entender como isso aconteceu. De repente, não houve mais tiros, mais violência, como se houvesse um mandato que passasse por canais silenciosos. Houve qualquer coisa ali de misterioso na forma como tudo se encerrou, uma guerra que se resolveu por decreto. As pessoas em Moçambique interpretam como se essa guerra tivesse sido provocada por espíritos e que, por isso mesmo, pôde ser encerrada quando eles se cansaram dela.

CC: Em seu país, o papel da feitiçaria, do mistério, também presentes na literatura de Guimarães Rosa, parece ser ainda mais marcante, não?
MC: É absolutamente dominante. Aqui no Brasil há uma separação mais visível entre uma realidade mais científica, racional, de outra, mais mágica e simbólica. Em Moçambique, a realidade é dominada pelo imaginário rural, porque os africanos, mesmo quando são católicos ou muçulmanos, têm também essa outra religião, que não tem nome, mas que define sentidos éticos na vida. Eu tenho colegas que são cientistas, mas que, quando ouvem alguém dizer “nesta noite eu me converti em leão”, acham isso perfeitamente possível. A fronteira entre a ficção e a realidade é outra.

CC: Então, quando o senhor travou contato com o realismo fantástico de Cortázar ou García Márquez, deve ter sentido muita familiaridade com aquele universo, não?
MC: Entrar em contato com o realismo fantástico foi como um passaporte, uma luz verde indicando que esse caminho, que nós tão bem conhecíamos, poderia ser trilhado também na literatura.

CC: Quais autores o impressionaram?
MC: É impossível não mencionar o García Márquez, como alguém que está à frente, mas o Juan Rulfo, autor de Pedro Páramo, me marcou muito, porque ali estava aquele universo delirante dos outros autores latino-americanos, mas com uma concisão de estilo admirável.

CC: O senhor consegue trabalhar em duas obras simultaneamente ou se dedica exclusivamente a uma? Tem algum horário certo para escrever?
MC: Sou biólogo e trabalho em uma empresa que faz estudos ambientais e planos de gestão de parques, o que me obriga a uma rotina de estar no serviço de manhã e à tarde. Quando faço trabalhos de campo, aproveito para conversar com muita gente do interior, o que também me obriga a tomar notas e, dessa forma, começo a escrever. Mas minhas histórias são sempre conduzidas pelos personagens. Eu preciso me apaixonar por um personagem, ele precisa tomar posse de mim, são os personagens que contam as minhas histórias. Não há nada arquitetado previamente, não tenho um desenho do livro na cabeça.

CC: Seu método de trabalho passa, então, obrigatoriamente por uma aproximação dos personagens? O senhor costuma escrever para si mesmo como eles são?
MC:  Começo a escrever quando eles ganham corpo, especialmente vozes. Eu quero que meus personagens sejam o menos possíveis reais, não sei como são, que aparência têm. Quase todos pertencem a esse universo rural, são quase sempre negros, que vivem em condições marginais e, portanto, estão abertos a olhar o mundo de outra maneira. E quase sempre sou atropelado por outro livro quando estou a escrever um. Agora estava escrevendo um romance e me surgiu um livro de poesia, como se a poesia me ajudasse a entender o que eu quero fazer.

CC: O senhor declarou certa vez que O Último Voo do Flamingo surgiu de uma pena encontrada na praia durante uma caminhada…
MC:  Eu tenho de confessar que romantizo porque, a certa altura, eu não sei por que escrevi tal história e quase que me obrigam que eu tenha uma explicação. Será que ninguém vai acreditar em mim se eu não tiver uma explicação? Mas, às vezes, eu sinto que estou inventando a explicação, quando são várias. Esse episódio da pena do flamingo encontrada houve sim, mas não determinou o livro, embora tenha conservado esta pena no meu computador enquanto escrevia o livro.

CC: O que determina o surgimento de um livro é a posse do personagem?
MC:  Sim, e há tantos personagens que me batem à porta que a certa altura eu tenho de comandar, fechar a porta e me dizer: agora, eu sou o dono desta casa. Daí, parto para esse processo mais oficinal, que dá menos prazer porque naquele primeiro momento eu sou uma esponja, um escutador. Ninguém é escritor se não for, primeiro, um escutador e deixar permear-se do que ouve. Mas não é só ouvir, é deixar que essas vozes tomem posse de si mesmas.

CC: O senhor saiu do jornalismo quando começou a publicar seus primeiros livros. Quis escapar a tempo, como aconselhava Hemingway?
MC:  O conselho de que é preciso matar o mestre, não é? Mas não foi por isso que eu saí do jornalismo. Eu cheguei a ele por causa da Frelimo, que me deu ordens para que me infiltrasse nas redações. Quando chegou a independência, eu já era jornalista mais por razão política do que por gosto, apesar de que havia ali uma mistura, porque meu pai era jornalista, e não foi sacrifício para mim. Mas a paixão que eu tinha por aquela causa mudou, morreu, deixou de ser verdade. E havia também no jornalismo uma tentação da arrogância, de estar em cima do acontecimento, de supostamente “saber mais do que os outros”, que eu não achava que fosse verdade. Hoje, quando olho para trás, percebo que o jornalismo foi uma grande escola, onde aprendi uma espécie de economia de texto, de me sentir comunicando com os outros e desse outro estar muito presente. Nesse sentido, o jornalismo foi um mestre e, em -sentido simbólico, talvez tenha sido necessário matá-lo. Mas ainda faço colaborações externas, crônicas na fronteira com o conto, outras vezes são artigos de opinião política, escritos como cidadão. Se eu não tenho um patrão, se eu não sou escravo, nunca mais termino o que faço. E sempre regresso à poesia, que é um trabalho infinito. Eu sou mais um reescritor do que um escritor. Assim, preciso de alguém que me imponha o deadline.

CC: Sendo mais reescritor do que escritor, como sabe quando um romance ficou pronto?
MC:  Quando acerto a primeira frase do livro, sei que está pronto. Eu termino pelo princípio. Os inícios dos meus livros sempre são provisórios, vou reescrevendo o livro e mudando sempre o início e, como um efeito dominó, isso me obriga a reescrever o resto. Quando encontro a primeira frase, que depois vai estruturar o resto, sei que esta é a última versão.

CC: O senhor relê seus livros depois de publicados?
MC:  Não, não os releio por medo de não sair deles. Aqueles personagens viveram tanto tempo dentro de mim, dois, três anos, e tão intensamente, dormindo e estando presentes comigo, que eles passam a conduzir a minha vida. Como eu não tenho outro processo de escrita que não seja pelos personagens, se eu não me afastar deles, não seria possível escrever outras histórias. Por isso não releio meus livros depois de prontos.

CC: Como leitor, por quais autores começou?
MC:  Eu comecei a ler desde pequeno e foi a poesia brasileira que me marcou de maneira decisiva, desde o meu início como leitor. Drummond, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira. Depois chegou a prosa, com Jorge Amado, Graciliano Ramos. Além, é claro, de Fernando Pessoa, não é possível se escapar a essa sombra. Dos autores portugueses, Sofia de Melo Breyner me marcou muito também.

CC: Há algum tema que está se aproximando aos poucos do senhor como uma futura história a ser contada?
MC:  Estou escrevendo agora uma coisa que é um pouco isso. Eu me confrontei com uma situação real, em que minha empresa tinha jovens no campo, no norte de Moçambique, trabalhando no controle ambiental de uma obra. Então apareceram leões, que começaram a comer pessoas, é um fato que ali é recorrente, são os chamados leões devoradores de homens. E no prazo de cinco meses, 26 operários tinham sido comidos pelos animais. E nós tínhamos nossos funcionários vivendo ali, em tendas, em situações muito precárias, e enviamos caçadores para protegê-los. Quando chegamos lá, começamos a perceber que esses caçadores não foram recebidos como heróis, mas como pessoas que poderiam colocar em risco essa fronteira entre o mundo real, dos leões verdadeiros, e entidades que podem não ser leões verdadeiros, mas seres humanos convertidos em leões. As identidades podem ser móveis, para muitos africanos alguém pode viver várias entidades em uma só vida. De repente, vi ali duas lógicas, dois universos diferentes convivendo em uma situação extrema.

CC: Como o senhor avalia o ensino de literatura em Moçambique?
MC:  Os escritores moçambicanos são estudados nas escolas. Os estudantes leem autores moçambicanos contemporâneos, como eu, a Paulina Chiziane, que foi publicada no Brasil, Ungulani Ba Ka Khosa, João Paulo Borges Coelho, Eduardo White. Mas, do ponto de vista da literatura, talvez o grande desafio seja ensinar a gostar de ler, criar paixão por um universo para o qual a escola simplesmente abre as portas.






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