(Texto em  versão original/português de Angola)

Um dia acontece. Você entra num autocarro. Lá fora chove a cântaros e você está encharcado até aos ossos. Sente-se irritado e deprimido, porque falta uma eternidade para chegar o Verão, porque não gosta do seu chefe, porque lhe dói um dente, porque já perdeu todas as ilusões e sabe que nunca beijará a Nicole Kidman. Então pisa inadvertidamente o pé demasiado grande de um sujeito qualquer. Tem vontade de repisar o pezudo. Afinal chove lá fora e a Nicole Kidman jamais o beijará. A um homem encharcado, um pobre homem à deriva numa cinzenta e fria tarde de Inverno, com dores de dentes, a um homem que já desistiu da Nicole Kidman, a um homem assim não se lhe pode exigir paciência. Você, no entanto, teve uma boa educação. Controla-se e pede desculpa. Mas eis que o pisado, o pezudo, reage aos gritos, ofendendo de forma vil a senhora sua mãe. Discutem, caramba!, mãe é mãe. E então o homem ergue o dedo:

“0 senhor sabe com quem está a falar?”

Um dedo tremendo. Uma tremenda frase. Nunca a escutou? A sério?! Um dia acontece. Eu escutei. Num cenário muito mais confortável, reconheço, embora também estivesse encharcado e chovesse lá fora. Foi nos banhos termais do Hotel Gellert, em Budapeste, numa piscina com água a trinta e oito graus de temperatura. Flutuava de costas, de olhos bem fechados, imaginando o momento em que beijarei a Nicole (ainda não perdi as ilusões), quando de repente alguma coisa vasta e mole caiu em cima de mim. Mergulhei naquela água nublada, aflito, sentindo que me afogava, que me ia afogar ali -mesmo, numa tigela de sopa, eu, filho de um professor de natação, até que consegui recuperar o pé e emergir, tossindo muito, sob a luz lassa e úmida. Os outros banhistas, meia dúzia de paquidermes muito velhos e muito alvos, vestidos apenas com um curto avental de pano, observavam-me de soslaio, disfarçando o riso. A coisa que caíra em cima de mim, quase me afogando, parecia-se com um deles. Porém, assim que abriu a boca – não para se desculpar, antes para me recriminar por estar ali, boiando, atravessado no seu caminho -, reconheci o sotaque: era um turista americano. Discutimos, claro, e eis que o vejo erguer o dedo:

“O senhor sabe com quem está a falar?” Não, desgraçadamente eu não sabia. O velho, então, encheu-se de paciência:

“Conhece o Robert Capa?”

Anuí com a cabeça. Quem não conhece?

“Ele nasceu aqui, sabia?, em Budapeste. E não se chamava Robert Capa, chamava-se Andrei Friedmann. Bem, o tipo tem uma fotografia tirada a 6 de Julho de 1944, durante a invasão da Normandia, que mostra um soldado americano a avançar para a praia, debaixo de fogo, só com o rosto fora da água. Já a viu?” E quem não viu? Um pobre rapaz com o capacete enterrado na cabeça, agarrado a uma arma, entre destroços. Olhando aquela imagem consegue-se até ouvir o fragor das explosões.

O velho encarou-me em triunfo: “Pois sou eu!” – Depois fez uma vénia elegante – quero dizer: tão elegante quanto lhe permitia o ridículo avental – e acrescentou:

“Sou o mais famoso desconhecido do mundo.”

Contou-me a sua história. Não acreditei numa única palavra, mas ficámos amigos. Ouvi-o com atenção, em parte por delicadeza, em parte porque tenho um fraco por desconhecidos, mesmo os ilustres. É verdade. A maior parte das pessoas quer saber tudo sobre Nefertiti ou Tutancamon. A mim o que realmente me fascina é o destino do anão negro Seneb, chefe do guarda-roupa real e de todos os anões do palácio do faraó, dois mil e quatrocentos anos antes de Cristo. Recordo-me, a propósito, de uma outra fotografia de Robert Capa, mais famosa, que fixa o instante exacto da morte de um combatente republicano durante a Guerra Civil de Espanha. Adivinha-se naquela imagem todo um romance por escrever. Um triângulo de ódios e amores: a história do homem que se vê, caindo para trás, os braços abertos; o destino do que o espreitava atrás de uma câmara, eternizando o momento, e o do que o matou com um tiro certeiro. Tenho a certeza de que nenhum ensaio, nenhuma biografia de Francisco Franco, ou de outra figura notória da época, nos poderia ensinar mais sobre as razões profundas do conflito.

Portanto, quando um dia você entrar num autocarro, enquanto lá fora chove a cântaros, e pisar um pezudo e ouvir a tremenda frase: “Você sabe com quem está a falar?” Quando isso acontecer domine a vontade de o pisar de novo, respire fundo e sugira: “Não, não sei. Quem é você?” Talvez seja o sujeito que, naquela triste tarde de Espanha, matou o combatente republicano. Os autocarros – acreditem – estão cheios de ilustres desconhecidos.

José Eduardo Agualusa [Alves da Cunha] nasceu no Huambo, Angola, em 1960. Estudou Silvicultura e Agronomia em Lisboa, Portugal. Os seus livros estão traduzidos em 25 idiomas.

portalraizes.com - O mais famoso desconhecido do mundo - Um relato de Agualusa
Robert Capa/ Andrei Friedmann. Fotografia tirada em 6 de Julho de 1944, durante a invasão da Normandia.

 






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