Sou mineiro, não daqueles que trabalham nas minas, lavras, catas ou jazidas explorando minérios. Sou mineiro, “natural” do estado de Minas Gerais. Das lembranças de infância carrego comigo muitas tentativas de contar os vagões de trens que cruzavam minha cidade dia e noite carregando minério. Bem me lembro que sempre perdia a conta. Mal sabia, naquela época, que era por meio desses trens que Minas sangrava (e ainda sangra). No dia 05 de novembro de 2015, Mariana entrou mais uma vez para a História, agora como protagonista do maior “desastre” ambiental que o Brasil já viu. Fiquei sabendo do rompimento da barragem pelas notícias de jornais e pelas redes sociais.

A convite de amigos, exatamente um mês depois da tragédia, estive na região atingida. Saímos de Ouro Preto rumo à comunidade de Bento Rodrigues, que fica aproximadamente a 35 quilômetros do centro de Mariana. A todo o momento, cruzávamos com caminhonetes a serviço da SAMARCO/BHP Billiton. Um longo trecho da estrada é ladeada por um maciço grandioso e belo e, ao que parece, já foi “loteado” pelas mineradoras para a exploração do minério de ferro, a medida que seguíamos a presença das mineradoras ficava cada vez mais forte. Próximos a Bento Rodrigues, a paisagem se descortina, vemos à nossa frente um grande descampado. A princípio lama e nada mais.

Com um olhar mais cuidadoso, percebemos entre o mar de lama, os vestígios do que foi uma comunidade. Um cenário macro, destruição a perder de vista. Da lama parece emergir ruínas. Em um instante passam pela cabeça centenas de imagens de filmes catástrofe ou de guerra, parece que o cérebro busca uma ancoragem, mas não há porto seguro. Um frio na espinha. Nada que se aproxime daquilo que vemos com os próprios olhos. Bento Rodrigues é uma pequena comunidade rural localizada no município de Mariana, em Minas Gerais. Entrou para a história por ter desaparecido da história. Foi a primeira comunidade a ser diretamente atingida pelas sucessivas ondas de água, lama e rejeitos provocadas pelo rompimento da barragem do Fundão.

A descrição de algumas pessoas é justamente essa, uma sucessão de ondas gigantes e um barulho muito forte como se o mundo estivesse acabando. Primeiro veio a água, mais leve, depois veio a lama, mais densa e viscosa. Derrubando e cobrindo tudo. Em alguns pontos chegando a 15 metros de altura. O impacto nessa comunidade foi muito maior devido à velocidade e ao volume dos rejeitos. A paisagem é impressionante, quase nada ficou de pé.

Perdidos na paisagem alguns seres humanos ainda reviram os destroços em busca de lembranças. Sem saber o que falar, nem mesmo o que fotografar, eu me aproximo deles. Não me lembro dos nomes. Algumas mulheres, dois homens e um menino. Todos da mesma família. Somente quem vivia ali consegue identificar os locais. O homem aponta para o nada e diz:  Ali era a casa do meu avô! Ali pra baixo ficava o bar! Não tem mais casa do avô, nem bar. Ele tira do meio da lama um carrinho de plástico, limpa um pouco e entrega ao menino. Menino feliz. Faço a foto. Na medida em que vamos adentrando no grande campo de lama e caminhando entre as ruínas, aquela paisagem macro vai se transformando em micro, e vamos nos apegando aos detalhes e às pequenas coisas, numa tentativa de reconstruir a história de quem viveu ali.

Aquela comunidade cheia de vida tornou-se um sítio arqueológico. Caminhei entre as ruínas da escola e do posto de saúde, passei entre casas e carros abandonados. Segui até onde havia ruínas à vista. No caminho passei por um trator tombado, com os pneus ao ar. A cor marrom avermelhada predomina. Passo pelo que sobrou de uma dispensa, banheiros expostos, restos a mostra. Uma imagem chama minha atenção: um quadro de São Jorge pendurado no que sobrou de uma parede. O guerreiro não caiu do cavalo, para alguns, sinal de fé. Ficamos na comunidade pouco mais que três horas. Partimos em silêncio. As imagens gritam.

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