Cada tanajura carregava em sua gorda barriga um formigueiro inteiro de saúvas. Razão por que os grupos escolares promoviam concursos: quem apanhasse mais tanajuras ganhava uma caixa de lápis de cor. Por que era sabido, naqueles tempos, que o grande problema do Brasil não era nem a má distribuição de renda nem a inflação: eram as saúvas. “Ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil”. Um modo digno de figurar numa bandeira. As tanajuras saíam em revoada e saía e meninada, caixas na mão, pegando tanajuras que eram levadas para o grupo. O destino delas ninguém sabe. Imagino que alguma fritada de tanajuras com cerveja…

As formigas são uma praga terrível. Formam uma sociedade absolutamente coesa, autoritária, sem oposição, sem partidos populares ou greves: são uma máquina de sobreviver com possibilidades ilimitadas de reposição de perdas. É inútil matar as formigas no lugar em que aparecem. Seu aparecimento é apenas uma incursão de guerrilheiros. Foi observando as formigas que as guerrilhas aprenderam a fazer guerra. Contra os estúpidos e pesados exércitos tradicionais, as guerrilhas desfecham ataques rápidos, inesperados, e logo desaparecem. Se ficassem tomando o terreno, os exércitos voltariam com tanques e aviões e as destruiriam. Mas elas somem. O que elas desejam não é o terreno. Como as formigas.

O terreno das formigas é o formigueiro, esconderijo longe dos olhos do jardineiro – frequentemente na horta do vizinho. Surgem as formigas de greta, vãos, buracos, invadem a casa, avançam contra doces e açucareiros, atacam as comidas. Atacada pelas terríveis lava-pés, nós as matamos às tapas. Nas casas, lavamos as formigas doceiras sob as torneiras mandando-as para dentro do cano. Atacamos os exércitos em marcha com inseticidas. Inutilmente. Aparecem outras para substituir as mortas. Nos jardins construímos fortificações ao redor das árvores. Mas elas sempre descobrem um meio de penetrar nas fortificações.

Pra acabar com as formigas só há um jeito: descobrir o esconderijo, o formigueiro. Se o formigueiro não for destruído as pequenas liquidações que realizamos no varejo são inúteis. Tanajuras, saúvas e formigas vieram por inspiração poética. Apareceram como metáforas dos bandidos. Antigamente os bandidos eram seres solitários: gambás que, vez por outra, entravam nas casas para roubar bananas; tatus que invadiam os jardins para comer os deliciosos bulbos das palmas. Tudo se resolvia com um cachorro ou um tiro.

Nessa época o  crime era uma empresa solitária; acontecia sempre no varejo; os criminosos eram camelôs que tinham medo do “rapa” policial. Hoje, com essa coisa de globalização, o crime virou empresa de grande vulto econômico. Funciona de maneira racional. Aprenderam as táticas das formigas. Agem militarmente como guerrilheiros: incursões rápidas, precisas – e logo somem, desaparecem nos seus formigueiros.

Santo Agostinho, descrevendo a forma como os Estados surgem, disse o seguinte: “No princípio é um grupinho de malfeitores. Crime aqui, crime ali, perseguidos, fugindo sempre. Com o tempo o grupo aumenta, fica mais forte, apossa-se de um território, estabelece um governo, transforma-se num exército”. Quando isso acontece, ele diz, “O grupinho de malfeitores se transformou num Estado, não porque tenha, repentinamente, ficado justo, mas porque a impunidade foi acrescentada aos seus crimes”. Que é, precisamente, o nosso caso. Há um Estado operando dentro e contra o Estado.

O crime de hoje não trabalha com ideias. Trabalha com dinheiro. É empresa. Dinheiro tem o poder muito alto para convencer. Assim, o estado do crime é muito mais forte que o estado dos subversivos. Ele tem muito mais poder subversivo. Poder, inclusive, para seduzir as forças da lei: o crime pode pagar mais.

Gostaria que as forças policiais/militares se dessem conta de que existe uma subversão em andamento. Gostaria mais que elas aprendessem com os exterminadores de formigas: é preciso destruir os formigueiros. As forças policiais/militares não são bobas. Elas sabem onde os formigueiros estão localizados. São os formigueiros que precisam ser destruídos. Se os formigueiros forem destruídos os jardins não precisarão ser protegidos.

Trechos da crônica “Tanajuras e bandidos”extraída do livro Concerto para Corpo e Alma – de Rubem Alves –  17ª Edição, Editora Papirus, páginas 94/98.






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