Uma das cenas de amor mais bonitas que já vi no cinema vem de um filme relativamente antigo e meio clichê de Paul Haggis. Third Person (em português Terceira Pessoa) tem uma trama baseada em histórias que se cruzam em três grandes metrópoles mundiais, e que no fim das contas, deflagram o próprio cineasta através de um personagem escritor. Como vocês podem ver, sou uma ótima crítica cinematográfica. Não é sobre o filme que venho a escrever hoje.
Esse é um dos filmes que se pode ver quando se está de pijama em casa num sábado à noite. É um dos filmes que me dá uma leve desculpa pra analisar publicamente os perfis sociais a que estamos acostumados ou não a lidar. Voltando a cena que mais me conectou: Os personagens de Morin Atias e Adrien Brody (você vai lembrar dele do famoso O Pianista – caso seja louco por cinema como eu) estão em um hotel romano, quando os dedos deslizam nos pés e levemente se encontram nos braços e nas faces.
É lindo. É um carinho espontâneo, imediatamente retribuído como se fosse um espelho. É leve. Não se trata de desejo ou de uma transa à mais. Cada toque é totalmente relevante. Nesse instante do filme (lá pelos 60 minutos de filme, não sei exatamente, ele é longo que só a gota serena) você esquece quem são esses personagens e os dramas que eles estão vivendo. É como se a gente entrasse automaticamente em outra história, onde ninguém se culpa ou tem culpa. Foi aí que dei o check da noite! Touché!
Há alguns dias atrás, comecei uma jornada psicológica e terapêutica pelas pessoas com as quais tive contato (não sou psicóloga nem nada, sou enxerida mesmo e por favor não tenha medo de conversar comigo, prometo me comportar!) pelo exato insight que acabei de ter vendo ao filme desse sábado ameno.
Percebi, partindo de mim (o que alivia minha imagem…) que somos acostumados a nos culpar por uma série de conflitos. Entre eles, pelo fato de termos obtido insucesso nas nossas relações. E o pior ainda está por vir: atribuímos conflitos e questões emocionais pragmáticas a pessoas que inclusive acabaram de chegar, estão ali meio que sem querer nada, tomando um café com bolacha maisena. Fiquei pasma com essa hipótese.
É simples. Passamos por uma série de fatos em nossas vidas, algumas legais e muito profundas, outras chatas e que merecem ser esquecidas. A esses processos que intitulamos de “não quero lembrar de você” dá-se o nome de processos traumáticos.
É traumático porque se encostar naquela quina da memória, vai doer de novo e vai nos repelir de experiência que, disse o lado emocional atordoado, nos remete ao fato já vivido. A gente passou por poucas e boas e sofreu algumas avarias. É normal sentir um pouco de cãibra quando bate o frio, se é que você me entende. Mas, um trauma emocional pode ser sanado. É aí que vem a tal da culpa, relacionamentos desgastados e tudo mais.
Uma vez eu subi um forte em uma dessas viagens da minha vida. Eu percebi que de onde eu estava, a vista era sensacional. Dava pra ver navios atracando, pessoas navegando em pequenos barcos. Mas por alguma razão percebi que eu estava em um lugar muito alto. Comecei a imaginar que as ondas se chocando contra o forte, poderiam provocar o desgaste do talude, que já há muito deve estar danificado, e poderia tencionar com o peso de algumas dezenas de pessoas. Eu cairia e morreria. Fim.
Mas veja bem, eu escolhi mudar meu ponto de vista e continuar olhando pro além mar. Comecei a perceber que havia um momento de gratidão ali e eu precisava saborear. Se a parada caísse de verdade, eu estaria feliz por mais uma vista apreciada. Lógico que, como vocês podem perceber, nada caiu, cá estou contando um fato de dez anos atrás. Você tem a vista do forte que você quiser ter.
Quando a gente perceber que é tudo uma questão de escolha, porque a vida é uma grande escola de escolhas, e por assim dizer se torna transiente, a gente percebe que não temos culpa por nada, porque nada confere julgamento a gente. Toda escolha vai trazer uma carga de informações imprevisíveis. Toda escolha é uma escolha válida. O que nos aconteceu no passado, foi uma infelicidade do caminho, mas escolher esse caminho também te trouxe aprendizado e privilégios.
Olhando com gratidão pra qualquer fato de nossas vidas, nós não somos capazes de atribuir a responsabilidade por futuras feridas a pessoas que acabaram de pedir pra participar de nossas caminhadas, por pura escolha. Elas também estão correndo riscos em te escolher, mas aparentemente, não importa. Porque o agora é tudo que temos e dá pra fazer muita coisa.
O agora será o maior responsável pelas nossas cicatrizes e novas feridas. Você pode estar lendo e pensando: “menina, você é muito sonhadora, não sabe nada de feridas.” Eu sei que está pensando isso, porque o ser humano é o bicho que mais sabe fazer drama, chantagem emocional e adora permanecer nos conflitos individuais.
Eu sei sobre feridas tanto quanto um cozinheiro sabe sobre queimaduras e cortes. Já passei por muita barra pesada que vai de abuso emocional à solidão profunda. Mas agradeço por cada uma dessas feridas. Não atribuo a culpa delas existirem a ninguém. Também não me culpo por nada. Aconteceu. Fim. É isso. E elas me trouxeram mais resistência.
Eu tenho algumas marcas de queimaduras no braço por cozinhar demais. Uma vez saí com um rapaz que, ao pegar em minhas mãos, percebeu que haviam algumas cicatrizes. Ele me questionou por essas cicatrizes de pouco mais de um centímetro. Eu disse: “são queimaduras, essa foi da vez que fiz meu primeiro pão de levain e eu o levei pra universidade onde todos se encantaram pelo sabor dele; essa foi quando eu fiz um peixe no papillote maravilhoso e meus amigos foram comer lá em casa. Foi mega divertido!”
Não se culpe pelas suas queimaduras. Não culpe quem já passou: tá todo mundo perdido, tá todo mundo tentando aprender nesse mundo. Não responsabilize quem escolheu ficar por algo que você nem sabe se vai acontecer. Escolha a sua vista e siga em frente.