“Os poetas são nossos órgãos do sentido. Nós vemos, ouvimos, sentimos sabores e cheiros devido aos modelos que nos são apresentados pelos poetas. Nós percebemos o mundo por meio desses modelos. Os poetas criaram esses modelos e não os imitaram a partir daquilo que se encontrasse desmodelado e bruto em algum lugar. Quando vemos cores, seja por meio de Van Gogh ou de uma Kodak; (o texto é de 1987) quando ouvimos sons – seja o de Bach ou de um rock; quando sentimos sabores, seja o de um Brillat-Savarin ou de um fast-food; essas cores, sons e sabores são como são não porque vêm da Natureza assim, mas porque são culturais, isto é, porque foram poeticamente elaborados por um motivo fundamental de alguma forma não percebido naturalmente.

Se tentássemos escrever uma história da percepção a partir da hipótese de que as cores são percebidas de maneira diferente antes e depois de Van Gogh, ela seria uma história da estética, da experiência.” (Vilém Flusser, 1987).

E ela, a poesia, agora, parece tão distante da realidade apressada dos espaços criados pela sociedade da informação. Ela, tão só, desprezada às vezes, vilipendiada (quase sempre), alvo da tentativa de compra e deboche; ela, apedrejada. Nem por isso deixou de se expressar – enjaulada ou sentindo o sopro da liberdade ao rosto, sob a chuva ou a nevasca, a Poesia sobrevive.

Não é de agora que brigam instrumentos e expressão. A poesia versus o teatro, a poesia versus a música – a poesia e a ópera, a poesia e os poderosos de plantão – odeiam-na, mas querem os poetas à sombra do poder etc. etc.

É no quanto a poesia faz parte de nossas vidas e como dela nos desligamos por desleixo ou superficialidade do olhar é que devemos nos ater. Não é possível adentrar os portais sagrados da Poesia sem que se desligue um pouco da pressa do metrô, do trem-bala, do coletivo urbano lotado, das milhares de imagens contidas em 30 segundos de um comercial de televisão ou de um vídeo do Youtube.

A poesia está ligada à linguagem, recorde-se – é um jogo em que um artesão da palavra procura repetir o outro, que repetiu o anterior, que canonizado foi. Se eu escrevo e você lê isso:

“Vosso escravo que sou, compete-me servir nas horas e ocasiões que bem vos parecer…”

Você – se é que ainda está aqui, parabéns! – é capaz de ler mais o que os algoritmos pós- modernos o educaram a fazer. Isso tem mais de 400 anos que foi escrito. Quando William Shakespeare escreveu esses versos – que fazem parte do belo soneto LVII, fazia além de versos, teatro, travessuras e jogos de amor. O poeta inglês referia-se a Ovídio e a Horácio – poetas gregos que ao mármore e ao ferro referiam-se como desejo e promessa de imortalidade.

Ora quando se propõe que a poesia seja desligada do alfabeto, da escrita comum – como ‘jogo de linguagem’ – e se deseja fazer sua transposição para aparelhos computacionais, há um grande trabalho a ser feito. O pressuposto, sem dúvida, sempre baseado nos insights do pensador tcheco-brasileiro (Flusser) é que haja pessoas engajadas em uma oralidade cada vez mais poderosa e refinada. Isso, contudo, contradiz um pensamento anterior – isto é, o ódio que se nutre à figura do poeta e à incapacidade racional que a República espera e que, segundo Platão, a poesia impede realizar plenamente.

Se quisermos prever e permanecer poetas com atividade poética futura, “é necessário refletir sobre poesia como oposição à imitação, e ter em vista, então, o caso especial da poesia como criação de linguagem”, como nos mostra este belo soneto de William Shakespeare

Vosso escravo que sou, compete-me servir
Nas horas e ocasiões que bem vos parecer;
De meus não tenho, até os virdes a exigir,
Serviços a prestar, nem tempo a despender.

Não ouso censurar a hora interminável.
Se olho o relógio e à espera vossa me conservo,
Nem o amargor da ausência julgo detestável
Por terdes ido, ó soberana! deste servo.

Nem ouso interrogar aos zelos desta mente
Por onde é que andareis, cuidando de que assunto,
Mas, triste escravo, espero, e penso unicamente

Em que felizes são os que vos tenham junto!
Naquilo que façais por simples veleidade,
O amor é tão leal que não verá maldade. ./.

Hoje, 4o.Centenário de William Shakespeare. Soneto LVII, na tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos.






Nascido na Campininha, criado em Sant'Anna das Antas e especialista em chutar lobeiras na Vila Jaiara, quando a maior escola da vida era a fábrica de tecidos da Vicunha e a biblioteca do Couto Magalhães. Rodou o mundo, ganhou cabelos brancos, nunca perdeu a esperança, mesmo em meio às agruras do comércio que exerceu por mais de 35 anos. Atualmente obtém a carteirinha de flaneur, merci bien, escrevendo e lendo por puro prazer.