Ao longo do século XX, a subjetividade feminina foi construída menos como autoria e mais como função. Função conjugal, função materna, função afetiva. O valor social da mulher esteve condicionado à sua capacidade de sustentar vínculos, mesmo quando esses vínculos exigiam silêncio, adaptação e desaparecimento simbólico. Dizer “não”, nesse contexto, não era apenas recusar algo. Era colocar em risco a própria legitimidade como mulher.
Sob essa lógica normativa, o “sim” feminino tornou-se um imperativo moral. Não como expressão de desejo, mas como estratégia de sobrevivência psíquica e social. O corpo aprende cedo que recusar pode significar exclusão, abandono ou punição simbólica. O resultado é uma subjetividade treinada para negociar a própria existência em troca de pertencimento.
Dizer “não”, para uma mulher, nunca foi apenas uma escolha privada. É um ato que desloca expectativas, rompe roteiros e desorganiza narrativas que sustentam relações assimétricas. Aprender a dizer não, portanto, não é aprender a negar o outro, mas a retirar o próprio corpo da função de sustentação de uma norma que exige autoabandono.
A atriz Jane Fonda nasceu em 1937, em um mundo que ensinava às mulheres que sua realização deveria orbitar em torno do casamento, da maternidade e da adaptação. Quando ela afirma que deixou o marido aos 62 anos porque sabia que, se ficasse, nunca se tornaria quem precisava ser, ela não fala apenas de uma decisão individual. Ela fala de uma ruptura histórica. Uma mulher que atravessou décadas de silenciamento aprendendo, tardiamente, algo que nunca lhe foi ensinado desde a infância, o direito ao limite:
“Aos 62 anos, deixei meu marido porque eu sabia que se ficasse, eu nunca me tornaria a pessoa que eu deveria ser. Eu nunca realmente realizaria tudo o que tenho dentro de mim. Levei cerca de 70 anos para aprender a dizer não. Eu ouvi alguém dizer uma vez que o ‘não’ é uma frase completa. Quando uma mulher diz não, ela não precisa se explicar. Não, é apenas não. Isso realmente foi um grande passo para mim: aprender que um não, é só isso, não”.
Aprender a dizer “não”, nesse contexto, não é um gesto simples. É um ato político, psicológico e existencial. Para muitas mulheres da geração de Jane Fonda, o “não” significava abandono, rejeição ou punição emocional. O preço do limite era alto demais. Por isso, ele foi adiado.
Quando ela diz que levou cerca de 70 anos para aprender a dizer não, ela expõe algo profundo: não é que mulheres não saibam dizer não. Elas aprendem, desde cedo, que não podem.
É nesse terreno que a fala de Jane Fonda ganha densidade histórica. Quando ela afirma que levou cerca de 70 anos para aprender a dizer não, ela não fala de um atraso pessoal, mas de um processo tardio de desidentificação com normas que moldaram sua vida inteira. Seu “não” não surge como ruptura impulsiva, mas como ato de reconfiguração subjetiva. Um gesto que questiona quem tem o direito de se colocar como sujeito, e em que momento da vida isso se torna socialmente aceitável.
Em seu livro O melhor momento, Jane Fonda revisita sua própria trajetória emocional e psíquica, propondo uma ideia radical para uma sociedade obcecada pela juventude: o envelhecimento pode ser o período mais íntegro da vida. Não porque tudo melhora magicamente, mas porque o medo de desagradar diminui e a necessidade de verdade aumenta.
No livro, ela reflete sobre como passou boa parte da vida tentando ser quem esperavam que ela fosse. Filha, esposa, atriz, ativista. Sempre ocupando papéis, muitas vezes sem habitar a própria subjetividade. O amadurecimento, para ela, não veio como declínio, mas como libertação psíquica. A maturidade permitiu algo que a juventude não autorizava: dizer não sem culpa.
Jane Fonda nos lembra que o “não” não é ausência de amor. É presença de si. E que, para muitas mulheres, esse aprendizado só acontece quando o corpo, a psique e a história pessoal já não toleram mais a autoanulação.
Antes de listar estratégias, é importante compreender algo fundamental: dizer não não é apenas uma decisão racional. É um aprendizado emocional que envolve o sistema nervoso, a história de vínculos e os modelos internalizados de afeto. Mulheres que foram educadas para agradar precisam, primeiro, reaprender a se sentir seguras ao frustrar o outro.
A seguir, algumas formas respaldadas pela neurociência e pela psicologia para desenvolver esse aprendizado.
Aprender a dizer não, como Jane Fonda nos ensina, não é aprender a endurecer. É aprender a existir sem pedir desculpas por ser inteira. Algumas mulheres aprendem cedo. Outras, como ela, aprendem depois de décadas. O tempo não invalida o aprendizado. Ele apenas revela o quanto fomos ensinadas a nos calar.
Dizer não não encerra o amor. Encerra a autoanulação. E talvez essa seja uma das formas mais maduras de cuidado psíquico que uma mulher pode oferecer a si mesma.
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