“Que mal fiz eu aos deuses todos?”

O poema Lisbon Revisited (Lisboa Revisitada) (1923), de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, aqui intitulado “Que mal fiz eu aos deuses todos”, mostra um poeta cansado, rejeitando até as ciências e a civilização moderna, onde ele reclama o direito à solidão e à indiferença. Faz parte da terceira fase de Álvaro de Campos (fase pessimista).

Neste poema evoca a infância como momento de felicidade que antecede a dor de pensar e a consciência – felicidade perdida; agressividade e incompatibilidade entre o eu e os outros (sente-se marginalizado, incompreendido, não há aceitação em relação àquilo que ele é).

Confira nesta bela interpretação do ator Ivan Lima

Lisbon Revisited (l923) – Alberto Caeiro

NÃO: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!

Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macerem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo…
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

Portugal
in. 15 Out 1890

Comentário da introdução: Passei Web

 

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