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5 maneiras de desconstruir em si mesma o mito da mulher infalível – Com Gabor Maté

Quando o corpo diz basta: o adoecimento das mulheres e o mito do normal

Por que tantas mulheres estão adoecendo para continuar existindo?

Durante séculos, a saúde feminina foi tratada como um subtema da medicina, quase sempre observada sob o olhar masculino. O corpo da mulher, ora considerado frágil, ora místico, foi moldado por ideais de docilidade, sacrifício e silêncio. Na Idade Moderna, as histéricas de Freud gritavam o que não podiam dizer. No século XX, as “donas de casa medicadas” viviam dopadas de ansiolíticos e solidão. E hoje, no século XXI, as mães contemporâneas adoecem de exaustão, ansiedade e doenças autoimunes, tentando conciliar amor, produtividade e perfeição.

O médico húngaro-canadense Gabor Maté chama isso de uma epidemia disfarçada de normalidade. Em seu livro O Mito do Normal: Trauma, Doença e Cura em uma Cultura Tóxica, ele revela o que a cultura moderna não quer admitir: estamos adoecendo não por fraqueza, mas porque fomos moldadas para negar nossas necessidades mais humanas.

O mito do normal: quando o adoecimento é um sintoma da cultura

Maté questiona o que chamamos de “normalidade”. Ele mostra que aquilo que tomamos como vida comum — jornadas extenuantes, multitarefa, culpa materna, repressão emocional, competitividade e desconexão com o corpo — é, na verdade, uma forma socialmente legitimada de sofrimento.

Segundo o autor, 80% das pessoas com doenças autoimunes são mulheres. Não apenas por razões biológicas, mas porque as mulheres, culturalmente, são ensinadas a cuidar dos outros, mesmo que isso signifique abandonar a si mesmas.

Maté descreve esse padrão com precisão: mulheres que não conseguem dizer “não”, que reprimem raiva legítima, que assumem a responsabilidade emocional dos outros e que confundem amor com autoanulação.

Esse comportamento, reforçado por séculos de socialização feminina, torna-se terreno fértil para o estresse crônico, que altera o funcionamento imunológico e endócrino, predispondo o corpo ao adoecimento.

Em outras palavras: não é o corpo que falha, é a cultura que exige demais e acolhe de menos.

O corpo como mensageiro do não-dito

Na visão psicossomática de Maté, o corpo é um espelho da vida emocional. Quando a mulher não pode se permitir fraqueza, quando chora escondido no banheiro para não preocupar os filhos, quando engole a raiva para manter a harmonia, o corpo se encarrega de falar por ela. “Quando não conseguimos dizer não, o corpo o dirá por nós”, escreve Maté.

A medicina moderna, muitas vezes, fragmenta o sujeito em partes: o médico cuida do corpo, o psicólogo cuida da mente, o cotidiano cuida de apagar incêndios. Mas a mulher real vive tudo isso simultaneamente. Ela amamenta, trabalha, cuida, ama e, às vezes, desaba em silêncio.

Por isso, Maté propõe uma medicina da integração, onde corpo, mente e cultura não são partes isoladas, mas um mesmo tecido.

5 maneiras de desconstruir em si mesma o mito da mulher infalível

A seguir, cinco práticas inspiradas nas ideias de Gabor Maté que ajudam a restaurar a conexão consigo mesma. Não são mandamentos nem dicas de autoajuda, mas convites para um retorno compassivo ao próprio corpo e à própria verdade.

1. Reaprenda a dizer não sem culpa

O “não” não é rejeição, é autocuidado. Mulheres adoecem quando dizem “sim” demais. Dizer “não” é afirmar a própria existência. É lembrar que você não precisa se esgotar para merecer amor.

2. Faça da raiva uma bússola, não um pecado

A raiva saudável não destrói, protege. Quando é reprimida, volta em forma de gastrite, dor de cabeça ou fadiga. Permita-se reconhecer o que irrita, o que fere, o que ultrapassa seus limites. Raiva é energia vital que pede direção, não punição.

3. Retome a intimidade com o corpo

Ouça os sinais: o cansaço, a tensão, o aperto no peito. São mensagens, não fraquezas. Ao perceber um sintoma, em vez de lutar contra ele, pergunte: o que meu corpo está tentando me dizer que minha mente não quis escutar?

4. Desfaça o mito da mulher/mãe infalível

O amor materno não está em ser perfeita, mas em ser humana. As crianças não precisam de mães incansáveis, precisam de mães reais, que se cuidam, que pedem ajuda, que ensinam pelo exemplo que vulnerabilidade também é força.

5. Crie rituais de reconexão e prazer simples

Maté afirma que o oposto do trauma não é ausência de dor, mas presença de segurança. Caminhar descalça, cozinhar devagar, conversar sem pressa, cantar, respirar conscientemente — pequenos gestos que reconectam corpo e alma. O refrigério não está no que fazemos para escapar da vida, mas no modo como reaprendemos a habitá-la.

Um chamado à cura coletiva

Maté não oferece fórmulas mágicas, mas uma virada de paradigma: curar não é “voltar ao normal”, é deixar de confundir o sofrimento com normalidade.

Quando uma mulher se permite parar, sentir e se reconectar, ela não está sendo fraca, está rompendo com séculos de condicionamento que a ensinaram a se calar.

Cuidar de si não é egoísmo, é um ato político, um gesto de resistência e amor. É como se o corpo dissesse: “Eu só quero que você volte para casa”.

Portal Raízes

As publicações do Portal Raízes são selecionadas com base no conhecimento empírico social e cientifico, e nos traços definidores da cultura e do comportamento psicossocial dos diferentes povos do mundo, especialmente os de língua portuguesa. Nossa missão é, acima de tudo, despertar o interesse e a reflexão sobre a fenomenologia social humana, bem como os seus conflitos interiores e exteriores. A marca Raízes Jornalismo Cultural foi fundada em maio de 2008 pelo jornalista Doracino Naves (17/01/1949 * 27/02/2017) e a romancista Clara Dawn.

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