Competições, desfiles, maquiagens, roupas, sapatos, cabelos, danças, músicas, páginas em redes sociais, jogos e até acesso a conteúdos destinados a adultos… Estamos diante de um fenômeno inquietante: crianças carregando responsabilidades, hábitos e rotinas próprias da vida adulta. Isso se chama adultização precoce — e não há beleza alguma nisso.
Criança não é um adulto em miniatura. Criança é criança. E, como tal, precisa viver a sua infância inteira, ocupando-se de experiências próprias do seu tempo: brincar, criar, imaginar, testar limites, experimentar o tédio e elaborar os “nãos” do mundo real.
A adultização é o desejo — muitas vezes inconsciente — de apressar o desenvolvimento infantil, como se o valor da criança residisse apenas em sua semelhança com o adulto. Essa aceleração compromete a socialização, a capacidade de conviver em grupo, a espontaneidade do brincar e o tempo interno necessário à formação emocional e simbólica.
Há uma perda silenciosa, mas profunda. Adultizar a criança é a forma mais eficiente de destruí-la. É substituir a infância por uma caricatura performática de um adulto nada saudável.
É alarmante perceber o quanto muitos pais deixam de observar a classificação indicativa do conteúdo que os filhos consomem em plataformas como Netflix, YouTube e redes sociais. Crianças acessam jogos violentos, vídeos inadequados, redes sociais altamente tóxicas — muitas vezes sem qualquer supervisão.
E exatamente porque captam essa tempestade de informações sobre o mundo adulto — sem instrumentos psíquicos para processá-las — é que vemos aumentar, com espanto e tristeza, os índices de depressão e de suicídio entre crianças de 5 a 11 anos.
Vivemos uma era em que o tédio é tratado como inimigo. Se a criança chora, entrega-se o celular; se faz birra, entrega-se outro celular; se há visita em casa, a ordem é: “vá jogar no seu quarto”. E quando a criança pede para baixar mais um jogo, a resposta é “sim” — apenas para que o adulto possa seguir com seus próprios assuntos.
Mas é justamente o tédio que abre espaço para a criatividade, para a imaginação, para o desejo genuíno de brincar. O “não” é estruturante. A birra, por mais difícil que pareça, é parte essencial do processo de regulação emocional. A criança precisa aprender a atravessar a frustração, a sentir o próprio corpo e o próprio tempo. Antes de dar um celular a uma criança, permita que ela experimente o vazio criativo do tédio. Ali nascem os mundos internos.
A idade adequada para falar com as crianças sobre temas difíceis — como abuso sexual, drogas, depressão, suicídio, machismo, racismo, homofobia — é desde o ventre materno. Mas que fique claro: trata-se de uma fala pedagógica e fabulosa, adequada à linguagem e à capacidade simbólica de cada fase.
É desde o ventre, também, que se semeiam valores empáticos, cooperativos, altruístas — que depois florescerão como consciência ética e sensibilidade social.
Os pais sempre me perguntam qual é idade ideal para dar um celular a uma criança… E eu sempre respondo que a idade adequada para dar um celular para uma criança, é não dar. Porque celular não é brinquedo de criança.
Quanto ao uso de telas do tipo tablet, o ideal é que seja a partir dos 12 anos — e mesmo assim, sem acesso irrestrito à internet. Tablets são ferramentas educativas, não babás digitais. Os jogos devem ser instalados pelos pais e sempre alinhados à faixa etária da criança.
Não crie crianças para a competição. Crie-as para a cooperação, para o amor, para a equidade, para o diálogo, para a justiça social. Embora estejam imersas em um mundo saturado pelas linguagens adultas, as crianças ainda anseiam pelo brincar, pela ludicidade, pela convivência com outras crianças.
Quando uma criança deseja ser adulta antes da hora, algo essencial foi deslocado: o direito de habitar a infância com dignidade e inteireza. Isso pode comprometer a construção de sua identidade, gerar sofrimento psíquico e configurar um futuro adulto fragmentado, ansioso e sem lastro afetivo.
É preciso que deixemos as crianças viverem a infância em sua totalidade. A rotina infantil deve ser feita de tempo livre, de inventividade, de chão, de histórias, de bichos, de amigos, de pausas e barulhos. Para a criança, brincar é necessidade psíquica, não luxo. Através do brincar, ela elabora seus afetos, simboliza seus medos, organiza seus desejos.
Uma criança sadia e feliz é barulhenta, inquieta, curiosa, altruísta e até um pouco rebelde. É assim que ela nos mostra que está viva — e que está se tornando quem é. Adultizar a infância é a forma mais eficiente de destruí-la.
Este texto é de autoria da escritora, neuropsicopedagoga e psicanalista, especialista em prevenção ao suicídio na infância e na adolescência, Clara Dawn. Ela é presidente e fundadora do IPAM – Instituto de Pesquisas Arthur Miranda em prevenção à drogadição, aos transtornos mentais e ao suicídio na infância e na adolescência.
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