Em agosto de 2025, o influenciador Felca viralizou ao denunciar a adultização de crianças nas redes sociais. O vídeo, assistido por milhões em poucos dias, trouxe à tona a erotização precoce e a exploração digital infantil. O debate é urgente, mas vai muito além dessa faceta visível. Há mais de cinco anos, venho alertando que a adultização não se limita à sexualização: ela também se manifesta na competição precoce, na imposição de padrões adultos e no esvaziamento da ludicidade, roubando da criança aquilo que ela tem de mais precioso: a própria infância.
Competições, desfiles, maquiagens, roupas, sapatos, cabelos, danças, músicas, páginas em redes sociais, jogos e até acesso a conteúdos destinados a adultos. Estamos diante de um fenômeno inquietante: crianças carregando responsabilidades, hábitos e rotinas próprias da vida adulta. Isso se chama adultização precoce, e não há beleza alguma nisso.
Criança não é adulto em miniatura. Criança é criança. E, como tal, precisa viver a sua infância inteira, ocupando-se de experiências próprias do seu tempo: brincar, criar, imaginar, testar limites, experimentar o tédio e elaborar os “nãos” do mundo real.
A adultização é o desejo, muitas vezes inconsciente, de apressar o desenvolvimento infantil, como se o valor da criança residisse apenas em sua semelhança com o adulto. Essa aceleração compromete a socialização, a capacidade de conviver em grupo, a espontaneidade do brincar e o tempo interno necessário à formação emocional e simbólica.
Há uma perda silenciosa, mas profunda. Adultizar a criança é substituir a infância por uma caricatura performática de um adulto nada saudável.
A repercussão do vídeo do Felca expôs algo que especialistas já vinham alertando: plataformas como YouTube, TikTok e Instagram não apenas permitem, mas incentivam a presença e a exposição de crianças. Seus algoritmos são desenhados para reter a atenção e estimular comportamentos que geram engajamento, muitas vezes à custa do desenvolvimento saudável.
A erotização precoce, como alerta o pediatra Daniel Becker, é uma das formas mais graves de adultização, mas não é a única. A pressão estética, a monetização da imagem, a competição por curtidas e a imitação de comportamentos adultos também são expressões desse fenômeno. E, apesar da gravidade, a legislação brasileira ainda não regulamenta de forma específica o uso da imagem infantil nas redes nem impõe limites claros para a capitalização dessa exposição.
É alarmante perceber o quanto muitos pais deixam de observar a classificação indicativa do conteúdo que os filhos consomem. Crianças acessam jogos violentos, vídeos inadequados e redes sociais altamente tóxicas, muitas vezes sem qualquer supervisão. Expostas a essa tempestade de informações, sem instrumentos psíquicos para processá-las, tornam-se mais vulneráveis a quadros de ansiedade, depressão e até suicídio, cujos índices já crescem em faixas etárias cada vez mais jovens.
Vivemos uma era em que o tédio é tratado como inimigo. Se a criança chora, entrega-se o celular; se faz birra, outro celular; se há visita em casa, a ordem é “vá jogar no seu quarto”. O silêncio comprado por telas impede a criança de experimentar a criatividade que nasce do vazio, a imaginação que floresce no ócio e a resiliência que se constrói diante da frustração. O “não” é estruturante. A birra é parte essencial do processo de regulação emocional. Antes de dar um aparelho, permita que ela sinta o próprio tempo e invente seus próprios mundos.
Falar com crianças sobre temas difíceis como: abuso sexual, drogas, depressão, suicídio, machismo, racismo e homofobia… é importante desde cedo, mas sempre com linguagem e recursos simbólicos adequados a cada fase. É assim que se semeiam valores empáticos, cooperativos e altruístas, que depois florescerão como consciência ética e sensibilidade social.
Sobre a idade para ter celular, a recomendação é clara: quanto mais tarde, melhor. Celular não é brinquedo. Quanto a tablets, o uso educativo pode começar por volta dos 12 anos, sempre com filtros, jogos instalados pelos pais e acesso controlado à internet.
Não crie crianças para a competição, mas para a cooperação, para o amor, para a equidade, para o diálogo e para a justiça social. Embora estejam imersas em um mundo saturado pelas linguagens adultas, as crianças ainda anseiam pelo brincar, pela ludicidade e pela convivência com outras crianças.
Quando uma criança deseja ser adulta antes da hora, algo essencial foi deslocado: o direito de habitar a infância com dignidade e inteireza. Isso compromete a construção de sua identidade, gera sofrimento psíquico e pode resultar em um adulto fragmentado, ansioso e sem lastro afetivo.
A rotina infantil precisa de tempo livre, de inventividade, de chão, de histórias, de bichos, de amigos, de pausas e barulhos. Para a criança, brincar é necessidade psíquica, não luxo. É pelo brincar que ela elabora seus afetos, simboliza medos e organiza desejos. Uma criança sadia e feliz é barulhenta, inquieta, curiosa, altruísta e, às vezes, um pouco rebelde. É assim que ela nos mostra que está viva e que está se tornando quem é. Adultizar a infância é a maneira mais eficiente de destruí-la.
Este texto é de autoria da escritora, neuropsicopedagoga e psicanalista, especialista em prevenção ao suicídio na infância e na adolescência, Clara Dawn. Ela é presidente e fundadora do IPAM – Instituto de Pesquisas Arthur Miranda em prevenção à drogadição, aos transtornos mentais e ao suicídio na infância e na adolescência. (Publicado originalmente no site oficial da autora em 2019)
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