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“Amar os filhos é também de dizer NÃO ao que tem que ser recusado” – Cortella

No âmago da criação, estamos imersos num paradoxo: amar significa acolher, mas também recusar. Essa dicotomia dialoga profundamente com a teoria psicanalítica: a figura parental, além de supor o papel do amor incondicional, é também aquele que impõe limites. E é justamente por isso que o amor se reveste de sentido. Não é sobre a conveniência do querer imediato e superficial, e sim sobre o investimento em subjetividade, autocontrole e autonomia. Em psicanálise, esse “não” é o primeiro divisor de águas contra a pulsão que exige uma satisfação imediata e pressupõe, severamente, o amadurecimento emocional.

Mário Sérgio Cortella, filósofo, mestre e doutor em Educação, problematiza a ética do amor incondicional que tudo aceita, um amor que flerta com a conveniência e ignora os perigos do “sim” acrítico. Em seu livro: “Educação, convivência e ética: audácia e esperança”, ele diz:

“Uma das coisas que mais fiz como educador de meus filhos foi tirar o encanto da droga ilegal, para impedir ou dificultar que tivessem acesso a esse tipo de prazer – porque é óbvio que é prazeroso, senão ninguém iria atrás dele. Não é bom fazer uso dessas substâncias, não é encantador. Uma pessoa que usa droga é fraca, pois não detém força suficiente para se defender daquilo. Eu não sou forte quando me comporto como a manada.

Sou forte quando consigo ter uma conduta consciente, em que faço o que faço porque decido o que fazer. Não porque as outras pessoas também o estão fazendo. Esse comportamento mimético (que imita), simiesco (parecido com macacos), em relação a algumas práticas é sinal de fraqueza e de pusilanimidade (fraqueza de ânimo).

Aceita-se hoje, com a maior facilidade, o que chamo de ética da conveniência. “Bom é tudo aquilo que me favorece. O que não me favorece considero ruim”. Em vez de termos valores de conveniência que sejam sólidos, menos superficiais, portanto, menos cínicos, há uma hipocrisia que leva a esquecer que ética não é cosmética. Não é efeito de fachada.

Nessa hora, costumo lembrar um alerta valioso feito pelo Corpo de Bombeiros: nenhum incêndio começa grande, e sim com uma faísca, uma fagulha, um disparo. Isso se aplica ao campo da ética. O apodrecimento dos valores éticos positivos se inicia também com pequenos delitos, infrações, aceitações, conivências.

A expressão ‘o amor aceita tudo’ é absolutamente antipedagógica. A pessoa que seja capaz de amar é aquela que recusa aquilo que faz mal, por isso um pai e uma mãe não pode jamais dizer ao filho ‘é porque eu te amo, então tudo aceito’. É exatamente o inverso: porque eu te amo é que eu não quero que você use drogas ilegais; é porque eu te amo que eu quero que você seja decente; é porque te amo que eu não quero que você banalize a sua sexualidade livre e bonita; é porque eu te amo que eu quero que você tenha esforço na sua produção e é porque você me ama que eu quero que você, meu filho, minha filha, me adverte, também me apoia, também me corrija naquilo que eu estiver equivocado.

Essa relação de cuidado mútuo, só nos faz crescer. Por isso esse exemplo do cotidiano tem que aparecer como sendo a recusa com qualquer situação. A ética do amor não é a ética da conveniência em que as coisas valem a partir de qualquer momento, mas uma ética que é capaz, também de dizer ’não’ ao que tem que ser recusado”.

Do ponto de vista pedagógico, o “não” é uma ferramenta fundamental no desenvolvimento de competências socioemocionais, sobretudo a tolerância à frustração e a capacidade de discernimento. Existencialmente, o “não” se traduz em convite à responsabilidade: um convite para que a criança dialogue com seus desejos e escolhas à luz do que constitui o bem, em vez de se anular em busca de prazer imediato.

Há aqui uma ética que não se confunde com conveniência não é fachada — mas emerge da coragem de recusar o que ameaça o desenvolvimento autêntico. E, nesse gesto de recusa amorosa, há convite ao diálogo reciproco: “porque você me ama que eu quero que você … me corrija naquilo que eu estiver equivocado”. O cenário, portanto, é uma criação onde o “não” amoroso ajuda a formar sujeitos conscientes, com fundamento ético, psíquico e social.

Em suma: Educar com firmeza e afeto é proclamar: “Eu te amo o suficiente para recusar o que te faz mal”. Esse “não” é ontológico, fundante da liberdade e da responsabilidade. É o gesto simbólico que diz: amor não é conivência, mas cuidado consciente. E nesse cuidado, os vínculos se fortalecem, a subjetividade floresce e o potencial humano encontra solo fértil.

Portal Raízes

As publicações do Portal Raízes são selecionadas com base no conhecimento empírico social e cientifico, e nos traços definidores da cultura e do comportamento psicossocial dos diferentes povos do mundo, especialmente os de língua portuguesa. Nossa missão é, acima de tudo, despertar o interesse e a reflexão sobre a fenomenologia social humana, bem como os seus conflitos interiores e exteriores. A marca Raízes Jornalismo Cultural foi fundada em maio de 2008 pelo jornalista Doracino Naves (17/01/1949 * 27/02/2017) e a romancista Clara Dawn.

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