Por muito tempo, a maternidade foi narrada como um destino natural da mulher, sustentado pelo ideal do amor incondicional, do sacrifício absoluto e da abnegação silenciosa. Amar um filho, dizia-se, seria suficiente para sustentar qualquer privação. No entanto, a realidade contemporânea tem colocado essa narrativa em xeque.
Em um cenário marcado por desigualdade social, precarização do trabalho, ausência de políticas públicas de cuidado e fragilização das redes comunitárias, cresce a percepção de que a maternidade deixou de ser apenas uma experiência relacional e passou a exigir condições materiais específicas para não se tornar fonte de sofrimento psíquico. A provocação de que “até 2030, a maternidade será um privilégio de quem pode pagar por ela” não surge como exagero retórico, mas como síntese de um processo social em curso.
Este artigo propõe uma análise científica, social, existencial e psicanalítica dessa transformação, buscando compreender de que modo a maternidade vem sendo progressivamente convertida em um projeto viável apenas para determinados grupos sociais.
A maternidade no Brasil e em grande parte do Ocidente foi historicamente construída sobre um paradoxo profundo. De um lado, a exaltação da figura materna como símbolo máximo de amor, cuidado e sacrifício. De outro, a negação da mulher como sujeito de desejos, limites e ambivalências.
Márcia Neder, em Os Filhos da Mãe: Como Viver a Maternidade Sem Culpa, denuncia esse ideal como um mito estruturante do sofrimento materno. Ao exigir da mulher uma maternidade perfeita, a sociedade apaga sua condição humana e transforma sentimentos legítimos como cansaço, raiva, ambivalência e frustração em sinais de falha moral.
Esse modelo se sustenta também na supervalorização da criança, fenômeno que desloca toda a responsabilidade do cuidado para a mãe, enquanto silencia suas necessidades emocionais, físicas e existenciais. A maternidade, nesse contexto, deixa de ser experiência compartilhada e se torna uma vivência solitária e sobrecarregada.
Sob a lente existencialista, a maternidade não pode ser compreendida como destino biológico, mas como projeto. Um projeto que exige escolha, responsabilidade e engajamento do sujeito em um contexto concreto.
Na contemporaneidade, a mulher se vê atravessada por exigências contraditórias. Espera-se dedicação integral à maternidade, ao mesmo tempo em que se exige produtividade, autonomia financeira e desempenho profissional contínuo. A promessa de conciliação plena se revela, para muitas, uma fonte permanente de angústia.
Sem redes de apoio estruturais, a maternidade passa a representar a ameaça de perda de si e de interrupção de outros projetos existenciais. Mulheres de classes privilegiadas conseguem atenuar essa tensão por meio da compra de serviços de cuidado. Para a maioria, entretanto, a maternidade se transforma em um fardo individual, atravessado pela culpa e pela exaustão.
A ideia de que a maternidade se torna progressivamente inviável encontra respaldo em dados socioeconômicos nacionais e internacionais. Criar filhos envolve custos diretos, como alimentação, saúde, educação e moradia, e custos indiretos que recaem majoritariamente sobre as mulheres.
A maternidade está associada à perda de renda, à estagnação da carreira e à ampliação da desigualdade salarial de gênero. O trabalho de cuidado, embora essencial à reprodução social, permanece não remunerado e socialmente desvalorizado.
O declínio das taxas de fertilidade observado globalmente reflete esse cenário. Nos países da OCDE, a taxa caiu significativamente nas últimas décadas, sinalizando menos uma rejeição à maternidade e mais a dificuldade concreta de sustentá-la em contextos sem políticas públicas eficazes de cuidado.
O estudo/discussão da Harvard T.H. Chan School of Public Health aborda o declínio das taxas de natalidade global e sugere uma mudança de foco nas políticas públicas: em vez de tentar forçar um aumento dos nascimentos, os governos deveriam trabalhar para tornar a vida familiar mais acessível e sustentável.
A professora Ana Langer (CAPA), médica especializada em pediatria e neonatologia, e especialista em saúde reprodutiva, argumenta que fatores como o alto custo de creche, moradia, alimentação e a falta de equilíbrio entre trabalho e vida familiar pesam muito nas decisões reprodutivas das pessoas, e que políticas que aliviem esses custos não devem ser vistas apenas como um meio de “aumentar a população”, mas como uma forma de garantir que as pessoas tenham condições reais de criar famílias de acordo com seus desejos e necessidades.
No Brasil, a crise da maternidade é agravada pela profunda desigualdade social e pela fragilidade das políticas públicas. A ausência de creches públicas de qualidade, a insuficiência da licença parental e a sobrecarga histórica atribuída às mulheres transformam a maternidade em um marcador de classe.
Enquanto famílias com maior poder aquisitivo conseguem acessar redes de apoio privadas, a maioria das mulheres enfrenta a maternidade em condições de isolamento e exaustão. O amor não falha. O que falha é a estrutura que deveria sustentá-lo.
Do ponto de vista psicanalítico, a maternidade é um período de intensa reorganização psíquica. A noção de preocupação materna primária, formulada por Winnicott, descreve um estado de sensibilidade profunda necessário ao cuidado inicial do bebê.
Entretanto, a lógica contemporânea da performance, da produtividade e da multitarefa interfere diretamente nesse processo. A mãe é convocada a ser forte, resiliente e incansável, mesmo quando está emocionalmente esgotada. A figura da “mãe guerreira”, longe de proteger, frequentemente silencia o sofrimento.
A frustração narcísica, a culpa pela ausência, a invisibilidade do trabalho de cuidado e a pressão econômica criam um terreno fértil para o sofrimento psíquico, incluindo quadros de depressão pós-parto e dificuldades na vinculação mãe-bebê. A crise da maternidade, nesse sentido, não é falha individual. É sintoma de um sistema que exige o filho, mas se exime de sustentar as condições necessárias para sua criação.
A percepção de que a maternidade se transforma em um luxo não aponta para um fracasso das mulheres, mas para o colapso do pacto social em torno do cuidado. Enquanto a sociedade continuar exigindo amor sem oferecer suporte, a maternidade permanecerá atravessada por culpa, exaustão e desigualdade.
A superação dessa crise exige a construção de uma ética coletiva do cuidado. Isso implica investimento em políticas públicas robustas, reconhecimento econômico do trabalho de cuidado e desconstrução do mito do amor materno como recurso infinito.
A maternidade só deixará de ser privilégio quando for compreendida como responsabilidade compartilhada. Não como sacrifício silencioso de algumas mulheres, mas como compromisso ético de toda a sociedade com a vida que deseja sustentar.
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