O final do ano costuma ser lido como um simples ritual social, mas, na prática, ele toca algo muito mais íntimo. Não é só virar a página do calendário. É encarar o espelho das nossas escolhas, dos nossos limites e do que ainda dói em silêncio. É um período que naturalmente desperta balanços internos, melancolias camufladas e uma sensação de vulnerabilidade que muitos não admitem em voz alta.
Na clínica, observo há anos como essa época aciona memórias, lutos não elaborados, expectativas frustradas e uma cobrança interna que pesa mais do que deveria. Não é incomum que as pessoas se sintam “obrigadas” a renascer, melhorar, produzir e recomeçar — como se a vida fosse uma maratona espiritual cronometrada. Só que o psiquismo não funciona no ritmo das convenções sociais. Ele tem seu próprio tempo.
“Fechamento de ciclo e renascimento” nasce justamente desse encontro entre o humano e o simbólico. Não escrevi para oferecer fórmulas rápidas. Escrevi porque acredito que o autoconhecimento é uma travessia, não um checklist. E travessias exigem coragem para olhar o que ficou escondido sob a argila.
No campo psicológico, esse período funciona como um marcador emocional. Ele desperta a sensação de finitude e de responsabilidade pelas escolhas que fizemos ou evitamos. Também ativa o superego e suas demandas por desempenho: seja melhor, faça mais, alcance mais. E, quando percebemos que somos humanos demais para acompanhar esse ritmo sobre-humano, nasce a tristeza de fim de ano, o cansaço, o desânimo.
Mas esse estado não é um erro do organismo. Ele é um convite. E convites não deveriam ser respondidos com culpa.
Gosto de pensar no Buda de Ouro coberto de argila como um símbolo do nosso processo interno. Crescemos cobertos por camadas de crenças, expectativas e comparações. Muitas dessas camadas foram impostas, não escolhidas. E, quando o fim do ano chega, essas crostas começam a rachar. É desconfortável, mas é libertador.
Ao retirar a argila, não buscamos criar um novo “eu”. Buscamos revelar o que já existia, mas estava enterrado: o valor único, pessoal e inegociável.
É verdade que o autoconhecimento exige responsabilidade, mas isso não deve ser confundido com culpa. Muitas pessoas carregam uma ideia equivocada de que sofrimento emocional é falha pessoal. Isso não só aprofunda a dor como impede a compreensão do contexto maior. O sofrimento não nasce apenas do que sentimos; nasce também das pressões sociais que nos atravessam, das desigualdades, do medo, da correria, da precariedade afetiva e material.
Transformação interior não significa ignorar o mundo. Significa aprender a se posicionar nele com consciência e autorrespeito.
Um dos pilares mais importantes do livro é o reconhecimento de que a dor tem função. Ela não é punição. É um sinal de algo que precisa ser visto, compreendido, ressignificado. Ao invés de evitar a dor, propomos escutá-la — porque ninguém renasce anestesiado.
Fechar um ciclo é honrar o que foi, inclusive o que nos machucou. É elaborar o luto do que não aconteceu, do que esperávamos ser, das escolhas que não conseguimos fazer. É compreender que renascer não significa reinventar-se do zero, mas reorganizar-se com mais verdade.
O fim do ciclo pode ser vivido com leveza quando entendemos que mudança não é salto, é processo. Por isso, proponho dez práticas simples para iniciar esse movimento:
1. Identifique uma crença limitante e escreva sua versão verdadeira.
2. Elabore o luto do que não aconteceu, escrevendo uma carta de despedida para a versão de si que ficou para trás.
3. Estabeleça um limite inegociável e comunique-o com clareza.
4. Reconheça seu valor e permita-se receber o que é justo.
5. Desapegue de um objeto que simbolize pesos antigos.
6. Pratique a “dieta emocional” interrompendo, por alguns dias, uma fonte de toxicidade.
7. Crie um ritual simbólico para marcar a transição entre ciclos.
8. Tome uma decisão sem esperar aprovação externa.
9. Defina um propósito pequeno e realizável para a próxima semana.
10. Perdoe suas falhas e continue. A transformação não exige perfeição, exige continuidade.
Não existe renascimento sem gentileza interna. Cada vez que alguém decide se escutar, estabelecer limites, respeitar seus tempos ou cuidar de sua dor, uma nova vida já começou a brotar.
O fechamento de ciclo não é o fim, nem o começo. É a passagem. E toda passagem merece ser vivida com consciência, coragem e um pouco de ternura consigo mesmo.
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