Literatura

Línguas que não sabemos que sabíamos – Uma das mais lindas metáforas poéticas de Mia Couto

Num conto que nunca cheguei a publicar acontece o seguinte: uma mulher, em fase terminal de doença, pede ao marido que lhe conte uma história para apaziguar as insuportáveis dores. Mal ele inicia a narração, ela o faz parar:

— Não, assim não. Eu quero que me fale numa língua desconhecida.

— Desconhecida? — pergunta ele.

— Uma língua que não exista. Que eu preciso tanto de não compreender nada!

O marido se interroga: como se pode saber falar uma língua que não existe? Começa por balbuciar umas palavras estranhas e sente-se ridículo como se a si mesmo desse provas da incapacidade de ser humano. Aos poucos, porém, vai ganhando mais à-vontade nesse idioma sem regra. E ele já não sabe se fala, se canta, se reza.

Quando se detém, repara que a mulher está adormecida, e mora em seu rosto o mais tranquilo sorriso. Mais tarde, ela lhe confessa: aqueles murmúrios lhe trouxeram lembranças de antes de ter memória. E lhe deram o conforto desse mesmo sono que nos liga ao que havia antes de estarmos vivos.

Na nossa infância, todos nós experimentamos este primeiro idioma, o idioma do caos, todos nós usufruímos do momento divino em que a nossa vida podia ser todas as vidas e o mundo ainda esperava por um destino. James Joyce chamava de “caosmologia” a esta relação com o mundo informe e caótico.

Essa relação, meus amigos, é aquilo que faz mover a escrita, qualquer que seja o continente, qualquer que seja a nação, a língua ou o gênero literário. Eu creio que todos nós, poetas e ficcionistas, não deixamos nunca de perseguir esse caos seminal.

Todos nós aspiramos regressar a essa condição em que estivemos tão fora de um idioma que todas as línguas eram nossas. Dito de outro modo, todos nós somos impossíveis tradutores de sonhos.

Na verdade, os sonhos falam em nós o que nenhuma palavra sabe dizer. O nosso fito, como produtores de sonhos, é aceder a essa outra língua que não é falável, essa língua cega em que todas as coisas podem ter todos os nomes.

O que a mulher doente pedia é aquilo que todos nós queremos: anular o tempo e fazer adormecer a morte.

(Trecho extraído do livro “E se Obama fosse africano?” – Ensaios de Mia Couto – Página 08 – Companhia das Letras).

Portal Raízes

As publicações do Portal Raízes são selecionadas com base no conhecimento empírico social e cientifico, e nos traços definidores da cultura e do comportamento psicossocial dos diferentes povos do mundo, especialmente os de língua portuguesa. Nossa missão é, acima de tudo, despertar o interesse e a reflexão sobre a fenomenologia social humana, bem como os seus conflitos interiores e exteriores. A marca Raízes Jornalismo Cultural foi fundada em maio de 2008 pelo jornalista Doracino Naves (17/01/1949 * 27/02/2017) e a romancista Clara Dawn.

Recent Posts

“Quando uma vítima mente para proteger o agressor, ela vira ponte para outra mulher sangrar” — Márcia Goldschmidt

“Quando uma vítima mente para proteger o agressor, ela não só é cúmplice dele, mas…

4 horas ago

Celebrar a própria vitalidade é, em qualquer idade, um gesto político de resistência – Jane Fonda

Jane Fonda atravessou mais de seis décadas públicas sendo atriz, ativista, mulher em reconstrução. Nesse…

2 dias ago

5 maneiras de desconstruir em si mesma o mito da mulher infalível – Com Gabor Maté

Quando o corpo diz basta: o adoecimento das mulheres e o mito do normal Por…

3 dias ago

A chacina no Rio de Janeiro: sintoma de um país que naturalizou a morte do pobre como forma de governo

Na maior operação policial dos últimos quinze anos, o Rio de Janeiro amanheceu entre o…

5 dias ago

Nosso QI está diminuindo 7 pontos por geração, dizem estudos

Nos confins da era digital, vivemos uma experiência curiosa: por um lado, o mundo se…

5 dias ago

Brincar livremente com a terra é o elixir contra o sedentarismo social da infância hiperconectada

"Onde foi que você deixou a criança que brincava numa poça d’água como se navegasse…

1 semana ago