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Nosso QI está diminuindo 7 pontos por geração, dizem estudos

Nos confins da era digital, vivemos uma experiência curiosa: por um lado, o mundo se expandiu, as conexões se multiplicaram, o acesso ao conhecimento tornou-se quase instantâneo; por outro, paira a sensação de que nosso “piloto automático” interior se ativou, diminuindo nossos espaços de silêncio, reflexão e pensamento profundo.

A pergunta que ecoa, então, é a seguinte: será que o uso massivo das telas e da tecnologia está, efetivamente, nos tornando “menos inteligentes”, ou ao menos mais preguiçosos?

Para responder isso precisamos nos conhecer profundamente a partir das fusão entre ciência, ambiente e cultura.

Panorama científico: o que dizem os dados

Nas últimas décadas do século XX, diversos estudos indicaram que ganhos médios de QI (quociente de inteligência) foram observados em muitos países — em torno de 2 a 3 pontos por década foram relatados. As causas apontadas incluíam melhoria nutricional, maior escolarização, ambientes mais estimulantes e complexos. Essa tendência ficou conhecida como “efeito Flynn” (James R. Flynn).

Inversão de tendência

Mais recentemente, estudos em países como os Estados Unidos mostram que a tendência de elevação dos escores de QI mudou de direção no início do século XXI. Por exemplo, entre 2006 e 2018 os escores em três de quatro domínios cognitivos caíram em amostras norte-americanas. Ainda que a inteligência como “potencial” não esteja necessariamente diminuindo, há uma queda nos resultados padronizados — o que exige cautela na interpretação.

Uso de telas, atenção e funções cognitivas

Paralelamente, o mundo digital investigado por psicologia e neurociência revela que o uso recorrente e intenso de telas pode estar associado a:

  • Dificuldades de atenção e concentração em crianças com alta exposição a mídias digitais.
  • Possíveis declínios em desempenho cognitivo e velocidade de processamento relacionados ao uso de mídia digital, interrupções frequentes e multitarefa.
  • Relação complexa entre tipos de uso (por exemplo, jogar videogame vs. rolar redes sociais) e impacto nas habilidades de raciocínio, memória de trabalho, aprendizado.

O que os dados não nos permitem afirmar com certeza

  • A queda nos escores de QI não necessariamente significa que as pessoas sejam “menos inteligentes” em termos absolutos — pode refletir, por exemplo, mudanças nos testes, no perfil de teste ou nas habilidades requisitadas nas sociedades modernas.
  • O uso de telas não está rigorosamente estabelecido como causa única de declínio cognitivo ou de QI — há muitos fatores de confusão (socioeconômicos, educacionais, genéticos, ambientais).
  • A variabilidade entre atividades digitais é grande: nem todo uso de tela é equivalente ou igualmente prejudicial.

A cultura digital e o “pensar preguiçoso”

Poderíamos dizer que a tela funciona como uma espécie de objeto transicional (como Donald Winnicott descreve) que promete consolidação e presença, mas muitas vezes entrega distração e fragmentação.

O sujeito-tela torna-se espectador de si mesmo, menos ativo na elaboração simbólica, mais passivo no consumo — e o pensar profundo (o espaço interno de associação livre, de reflexão, de silêncio psíquico) sofre.

Auto-atenção, preguiça psíquica e “vagabundagem” existencial

O professor Mario Sergio Cortella costuma dizer que todas essas facilidades tecnológicas estão nos deixando vagabundos. Quando ele fala em “vagabundos”, está apontando para o sujeito que recusa tomar as rédeas do próprio pensamento do que para um juízo moral simplista. E aqui entra o desafio: se a tecnologia ocupa o palco central da atenção, o sujeito abdica da cena de sua própria vida. 

Isso não significa necessariamente que se torna “estúpido” no sentido clínico ou científico, mas sim que descuida o ato de pensar, de aprofundar, de gravar sentido e isso pode parecer estupidez ou preguiça.

Cultura de estímulos rápidos, atenção fragmentada e inteligência em suspensão

A ciência parece apoiar que o excesso de estímulos digitais – cutucadas constantes, multitarefa, recompensa rápida – pode comprometer funções como atenção sustentada, velocidade de processamento, memória de trabalho.
Quando o “mundo externo” dita o ritmo, o “mundo interno” do sujeito fica em segundo plano; o pensamento se esgota em reações, não em reflexões.
Dessa forma, o declínio não se dá tanto no “fabricante” (o cérebro/hardware) quanto no “uso” (software da mente): a inteligência em potencial permanece, mas não é acionada no seu modo pleno.

Estamos mais burros ou apenas mais desconectados de nós mesmos?

Concluindo: não podemos afirmar que as pessoas estejam se tornando “burros” no sentido tradicional ou irreversível. Mas podemos afirmar, com respaldo científico e psicanalítico, que há risco de nos tornarmos preguiçosos no pensar, fracos na atenção, adversários de nossa própria profundidade psíquica.

Se o sujeito abdica da reflexão, se a cultura o convida ao consumo imediato, se as telas roubam o espaço do silêncio interno, então sim: acabamos por deixar nosso intelecto em “modo de espera”, o que pode parecer estupidez para quem valoriza o pensamento.

O convite é: recuperar o lugar de sujeito no próprio processo cognitivo. Usar a tecnologia com consciência, reservar tempos para a atenção profunda, cultivar o vazio produtivo e o questionamento incessante.

Lembre-se, o adversário não é a tecnologia, mas a desatenção deliberada: o abandono de si em favor do estímulo fácil.

Fontes pesquisadas

  1. Bratsberg, B., & Rogeberg, O. (2018). Flynn effect and its reversal are both environmentally caused. PNAS.
  2. “Americans’ IQ scores are lower in some areas, higher in one” – Northwestern University study (2006-2018).
  3. Santos, R. M. S. et al. (2022). The Association between Screen Time and Attention in Children. Systematic review.
  4. Sauce, B. et al. (2022). The impact of digital media on children’s intelligence while controlling for genetic and socioeconomic background. Nature.
  5. Baumgartner, S. E. (2024). and Long-Term Effects of Digital Media Use on Attention. Springer.
  6. Shanmugasundaram, M., et al. (2023). The impact of digital technology, social media, and artificial […] Frontiers in Cognition.
  7. Coşkun, O. (2025). The Impact of Screen Exposure on Attention Development in Preschool Children in Turkey. JAREM.
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