“Quando uma vítima mente para proteger o agressor, ela não só é cúmplice dele, mas vira ponte para outra mulher sangrar”. Esta frase foi dita recentemente por Márcia Goldschmidt nas redes sociais e ganhou repercussão não apenas pela contundência, mas pela coragem de tocar num tema que poucos ousam nomear: o pacto de silêncio que aprisiona tantas mulheres dentro da lógica da violência.
O comentário da apresentadora, feito após a entrevista de Marcela Tomaszewski negando as agressões de Dado Dolabella (caso já julgado e condenado) expõe uma ferida coletiva: quando uma mulher mente, pressionada ou não, o eco de sua negação ultrapassa sua história pessoal e ressoa no corpo de todas as outras.
O silêncio feminino tem raízes antigas. Desde os códigos de conduta patriarcais até a moral burguesa que associou a mulher à pureza e à obediência, as sociedades ensinaram que “ser mulher” era suportar.
Historicamente, a violência de gênero foi tratada como “questão privada” ou “drama doméstico”. Por séculos, o direito e a religião legitimaram o controle do corpo e da palavra feminina. O castigo, o medo, a dependência e o amor distorcido se tornaram camadas de uma mesma narrativa: a mulher como depositária da culpa.
Esse silêncio não é apenas individual. É um fenômeno cultural, político e psíquico. Ele é a linguagem do trauma.
Mentir, nesse contexto, raramente é uma escolha livre. Em muitos casos, a mentira surge como mecanismo de autopreservação. A mulher teme perder o amor, os filhos, a casa, a reputação, o sustento, ou simplesmente teme morrer.
Outras vezes, mente porque está emocionalmente capturada pelo agressor, presa em um ciclo de idealização e culpa que a psicanálise descreve como identificação com o agressor: um modo inconsciente de tentar controlar o perigo tornando-se aliada de quem a ameaça.
Na mentira, há ambiguidade: ela pode proteger momentaneamente o corpo, mas dilacerar a alma. E como lembra Márcia Goldschmidt, quando essa mentira se torna pública, especialmente em casos já julgados e condenados, ela não é apenas uma negação individual: é um retrocesso simbólico para todas as outras mulheres que lutaram para serem ouvidas.
Quando uma mulher renega a própria dor, o sistema patriarcal respira aliviado.
Cada recuo, cada “não foi bem assim”, cada “foi só uma discussão” reforça o imaginário de que as mulheres exageram, inventam ou enlouquecem. Assim, o sofrimento feminino volta a ser posto em dúvida, e o agressor volta a ser socialmente absolvido.
Esse é o sentido mais profundo da frase de Márcia: a mentira individual pode se converter em uma violência coletiva.
Uma mulher que mente, seja por medo, por amor ou por dependência, não fere apenas a si mesma. Ela abre uma brecha histórica pela qual o machismo se infiltra novamente e faz outra mulher sangrar.
Falar a verdade, portanto, é um ato político. Toda mulher que rompe o silêncio desafia não apenas um homem, mas uma estrutura inteira. Ela enfrenta o olhar social que desconfia da vítima e o sistema judicial que ainda a revitimiza. E ao fazer isso, ela abre espaço para que outras possam existir sem medo.
Como sociedade, precisamos compreender que não basta punir o agressor: é preciso transformar o ambiente que obriga a mulher a mentir para sobreviver. Isso exige educação emocional, políticas públicas, acolhimento psicológico e uma cultura de escuta verdadeira.
Na psicanálise, o ato de nomear a verdade é também o primeiro passo para a cura. Mentir para proteger o agressor é, no fundo, uma tentativa de manter o vínculo, ainda que esse vínculo seja o próprio cárcere. Mas enquanto o amor continuar sendo confundido com submissão, e o perdão com apagamento, haverá mulheres adoecendo para sustentar o silêncio.
A fala de Márcia Goldschmidt incomoda porque ela aponta para esse ponto frágil da sociedade: o lugar onde a mulher, ao negar a violência, pensa estar salvando o amor, quando na verdade está sacrificando a si mesma e a todas as que virão depois.
Não se trata de julgar, mas de compreender. De reconhecer que a mentira feminina em contexto de violência não nasce da maldade, mas do medo.
E que a única forma de quebrar esse ciclo é acolher a mulher (mesmo aquela que mente) e ajudá-la a encontrar uma linguagem que não seja a do silêncio.
Como diz Márcia, “quando uma mulher mente para proteger o agressor, ela se torna ponte para outra sangrar”. Mas quando ela fala, quando escolhe a verdade, ela se torna farol: e é nessa luz que todas podemos nos reconhecer.
1. Ligue 180 — Central de Atendimento à Mulher – Funciona 24 horas, todos os dias, gratuitamente.
Atende em todo o Brasil e também no exterior (para brasileiras que estejam fora do país).
Oferece acolhimento, escuta qualificada, informações sobre direitos e encaminhamento para serviços locais. É possível fazer denúncia anônima.
2. Polícia Militar — 190 – Em casos de emergência imediata ou risco de vida, a vítima deve ligar para o 190.
A PM pode intervir e conduzir a vítima a uma delegacia especializada.
3. Delegacias de Defesa da Mulher (DDM) – Especializadas no atendimento de mulheres vítimas de violência física, sexual, psicológica, patrimonial ou moral.
Onde não houver DDM, a denúncia pode ser feita em qualquer delegacia comum.
4. Ministério Público e Defensoria Pública – Prestam orientação jurídica gratuita e podem acompanhar o processo judicial, inclusive com medidas protetivas de urgência.
5. Centros de Referência da Mulher (CRMs) – Oferecem atendimento psicológico, social e jurídico.
Geralmente ligados às prefeituras ou secretarias estaduais.
6. Aplicativo “Direitos Humanos Brasil” (do Governo Federal) – Permite denunciar casos de violência e acompanhar o andamento, de forma online e sigilosa.
7. Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos — Disque 100 – Além de casos de racismo, homofobia ou abusos diversos, o Disque 100 também acolhe denúncias de violência doméstica ou institucional contra mulheres.
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