A imagem da família perfeita ainda ocupa um lugar sedutor no imaginário coletivo. Uma mesa posta, sorrisos espontâneos, ausência de conflitos e uma harmonia que parece permanente. No entanto, essa cena pertence muito mais ao campo da publicidade e da ficção do que à vida real. Famílias reais se constroem no cotidiano, atravessadas por cansaços, desencontros, afetos ambíguos e histórias que não começaram ali.
Quando olhamos para a família a partir da teoria sistêmica, somos convidados a abandonar o ideal da perfeição e a reconhecer algo muito mais potente: a família como um sistema vivo, complexo, em constante adaptação. É justamente na imperfeição que reside sua capacidade de crescimento, reorganização e transformação.
Sob a perspectiva sistêmica, a família não pode ser compreendida como a simples soma de indivíduos. Ela funciona como um organismo relacional, no qual cada integrante influencia e é influenciado pelo todo. Um casal com filhos não constrói apenas rotinas domésticas. Constrói sentidos, negocia fronteiras emocionais, herda histórias transgeracionais e lida diariamente com a subjetividade de cada membro do sistema.
Nesse contexto, os conflitos não surgem por ausência de amor ou por falhas morais. Eles emergem porque cada sujeito carrega memórias afetivas, crenças internalizadas, traumas silenciosos e formas particulares de responder ao mundo. Quando essas histórias se encontram sob o mesmo teto, as tensões tornam-se inevitáveis.
O cansaço que não é nomeado, a sensação de que um se doa mais do que recebe, o peso mental concentrado em quem organiza a vida familiar, o desconforto de repetir padrões da família de origem que se prometeu não repetir. Tudo isso faz parte da dinâmica sistêmica.
Esses desencontros não indicam fracasso. Pelo contrário. Eles revelam a capacidade adaptativa do sistema familiar. É justamente nos momentos de desequilíbrio que surge a possibilidade de reconhecer falhas, flexibilizar posições rígidas e reorganizar a forma como os vínculos se estabelecem. Nem sempre com harmonia, mas com potencial de transformação.
As contribuições de Humberto Maturana e Francisco Varela ampliam essa compreensão ao introduzirem a teoria da autopoiese. Segundo essa perspectiva, os sistemas vivos são capazes de se criar, se manter e se modificar continuamente, ao mesmo tempo em que permanecem estruturalmente acoplados ao meio em que vivem.
Aplicada à família, essa ideia nos ajuda a compreender que o sistema familiar se reorganiza constantemente. As crises, os conflitos e os impasses não são interrupções do funcionamento, mas parte do próprio processo de manutenção da vida relacional. O sistema tenta se ajustar para não adoecer.
Aquilo que muitas vezes é nomeado como crise familiar pode ser compreendido como um sinal de que os acordos vigentes já não dão conta das necessidades atuais. A crise convoca revisões, redistribuição de responsabilidades, reorganização de papéis e, sobretudo, diálogos mais honestos.
A dor que emerge no sistema não deve ser vista como sinal de incompetência relacional, mas como um convite à escuta. Ela aponta para desequilíbrios na circulação do afeto, do reconhecimento e do cuidado. É o processo de homeostase sendo tensionado para permitir evolução e não estagnação.
Nenhuma família real vive em equilíbrio permanente. Todas transitam entre fases de maior estabilidade e momentos de reequilíbrio. Amor e atrito, conexão e exaustão coexistem. A ideia de perfeição, nesse cenário, funciona como um constructo social adoecedor, pois gera culpa, comparação e silenciamento.
Famílias não adoecem por serem imperfeitas. Adoecem quando não podem falar sobre o que dói, quando o conflito se torna tabu e quando o erro é transformado em culpa crônica.
Com a chegada dos filhos, o sistema familiar se torna ainda mais complexo. Novos papéis surgem, as demandas aumentam e as pressões externas se intensificam. Cada filho não traz apenas alegria, mas também ativa memórias profundas da própria infância dos adultos.
Criar filhos é, inevitavelmente, um reencontro com o próprio passado. Por isso, tantos conflitos emergem justamente no momento em que os pais mais desejam acertar. Não se trata de incapacidade, mas de conteúdos psíquicos sendo mobilizados e pedindo elaboração.
Famílias funcionais não são aquelas que não enfrentam problemas. São aquelas que conseguem falar sobre eles. São as que transformam o conflito em possibilidade de crescimento e não em ruptura silenciosa. O amor, nesse contexto, não se sustenta apenas quando tudo dá certo, mas na disposição de seguir tentando, com presença, respeito e humildade.
Cada integrante impacta o todo, e o todo afeta cada integrante. Essa circularidade é o coração da teoria sistêmica e também da experiência humana.
A família real é aquela que aprende a se acolher nos dias difíceis, que reconhece limites sem transformar falhas em condenações eternas, que se permite revisar acordos e reparar vínculos. A beleza das relações não está na estética idealizada, mas na coragem de permanecer, ajustar, reparar e continuar escolhendo uns aos outros.
Talvez a pergunta mais honesta não seja como alcançar a perfeição, mas como permanecer humano enquanto se cresce junto. É essa humanidade imperfeita que sustenta famílias vivas, pulsantes e capazes de se reinventar todos os dias.
Autor: Cid Paz Vieira Filho, Psicólogo, Orientador Parental, pós-graduando pelo Instituto de Psicoterapia Sistêmica Cognescere e colunista do Portal Raízes.
O título faz uma paráfrase consciente da frase inicial de Anna Kariênina, de Liev Tolstói. A escolha não é casual. Assim como o autor russo questiona modelos universais de felicidade, este texto propõe uma leitura sistêmica que rompe com o ideal da família perfeita e valoriza a singularidade das experiências familiares reais
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