Antes da terra ser remexida, antes da semente tocar o chão, algo já aconteceu no invisível. Alguém sonhou. E sonhar, nesse caso, não é fantasia vazia. É um ato de amor. Só planta quem acredita que o futuro pode ser bonito.
Rubem Alves sabia disso. Seu encantamento pela vida nunca foi distraído. Ele olhava como quem sabe que o mundo é frágil. Talvez por isso tenha escolhido o jardim como metáfora. Jardins não se impõem. Eles pedem cuidado, tempo e delicadeza. E, ainda assim, não garantem nada.
Em seu livro: O amor que acende a lua, Rubem nos convida a essa experiência silenciosa de perceber que tudo o que vale a pena começa dentro. Antes da árvore, nasce o desejo de sombra. Antes da flor, o anseio pelo encanto. Antes do lago, a saudade de algo que ainda não existe. A alma antecede o mundo.
Há uma sabedoria profunda nisso. Vivemos tentando organizar o exterior enquanto o interior permanece descuidado. Queremos colheitas rápidas em terrenos que nunca foram preparados. Exigimos flores onde só houve abandono. Mas a alma funciona como jardim. O que não é regado adoece. O que não é visto se fecha.
Rubem não escrevia para ensinar técnicas. Ele escrevia para despertar sensibilidades. Seu pensamento não queria convencer. Queria seduzir. Como quem diz ao leitor: venha ver isso comigo. Olhe de novo. Mais devagar.
O jardim, para ele, não era decoração. Era revelação. Nele convivem beleza e risco. Flores e espinhos. Perfume e ferida. Quem ama jardins sabe que o encanto nunca vem sem a possibilidade do corte. E ainda assim, escolhe plantar.
Talvez porque amar seja isso. Aceitar que aquilo que pode nos ferir também é o que nos mantém vivos. Não há rosa sem espinho. Não há vínculo sem vulnerabilidade. Não há vida sem perdas. Rubem não negava isso. Pelo contrário. Ele abraçava essa verdade com ternura.
Seu olhar era o de quem compreendia que a dor não anula a beleza. Ela apenas a torna mais humana. O jardineiro não desiste da terra porque um dia se feriu. Ele aprende a tocar com mais cuidado.
Há algo profundamente psicanalítico nisso, ainda que Rubem jamais precisasse nomear. Ele sabia que o ser humano é feito de camadas. De memórias que brotam sem aviso. De afetos que criam raízes profundas. De palavras ditas na infância que continuam florescendo ou machucando na vida adulta.
Cultivar um jardim interno é revisitar essas camadas com gentileza. Não para arrancar tudo o que dói, mas para compreender o que pode ser transformado. Algumas plantas precisam ser podadas. Outras, apenas realocadas. Outras precisam morrer para que algo novo possa nascer.
Rubem falava da vida como quem aceita seus ciclos. Ele não tinha pressa de primavera. Sabia do valor do outono. Sabia que há beleza nas folhas que caem, porque elas alimentam o solo do que virá depois.
Seu encantamento pela vida não era eufórico. Era contemplativo. Um encantamento de quem observa uma criança brincando, uma árvore balançando ao vento, um silêncio bem colocado entre duas palavras. Pequenos milagres cotidianos que passam despercebidos aos olhos apressados.
O jardim de Rubem não era um lugar de perfeição. Era um lugar de sentido. Um espaço onde o viver podia ser experimentado com mais presença e menos exigência. Onde o valor não estava na grandiosidade, mas na intensidade com que se ama o instante.
Há uma ideia que atravessa sua obra como raiz subterrânea. O jardineiro reconhece um bom lugar porque foi ele quem o tornou assim. Não é o solo que decide tudo. É o cuidado. É o olhar que insiste. É o gesto repetido de quem acredita.
Isso nos desloca da espera passiva. Não se trata de encontrar o lugar ideal, a vida perfeita, o amor sem falhas. Trata-se de cultivar. Onde estamos. Com o que temos. Do jeito possível.
Talvez seja isso que Rubem Alves tenha tentado nos dizer a vida inteira, sem nunca gritar. A beleza não é algo que se encontra pronto. É algo que se constrói no encontro entre o olhar e o mundo. Entre a alma e a terra.
Todo jardim começa com um sonho de amor. Mas continua com escolhas diárias. Regar mesmo quando não há flor. Cuidar mesmo quando ninguém vê. Permanecer mesmo quando o espinho fere.
E ainda assim, confiar. Porque quem ama jardins sabe. Sempre vale a pena plantar, cuidar e ficar.
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