Meio ambiente

10 formas de reconectar a criança com a natureza de um mundo real – Richard Louv

A infância é um espaço-tempo em que corpo e a alma dialogavam com o mundo, um território de descobertas pelo toque da terra, pelo canto dos pássaros, pela liberdade dos campos.

Nesse ambiente, cada gesto era rito, cada pedra, um portal, e cada riacho, um espelho da alma em formação. O brincar ao ar livre não era apenas um momento de diversão — era educação sensorial, emocional, simbólica. Era aí que se forjava o sujeito, o que se reaproximava da vida.

Richard Louv, autor de inúmeros livros sobre desenvolvimento infantil e uma das maiores autoridades no tema criança e natureza no mundo, em seu best-seller “A última criança na natureza”, traz à lume uma das doenças silenciosas da sociedade moderna, aquilo que ele chama de Transtorno por Déficit de Natureza e diagnostica uma realidade alarmante: a infância contemporânea está cada vez mais distante do mundo natural,  confinada a ambientes internos, sob o domínio de telas, cercada por cercas de medo.

O diagnóstico metafórico de Louv revela efeitos reais: ansiedade, déficit de atenção, desmotivação, distanciamento afetivo do mundo. Mais que uma nostalgia, o autor propõe soluções práticas: natureza como o espaço da curiosidade, um complemento à pedagogia, uma cura para a solidão do homem pós-moderno.

A natureza opera como esse lugar de delírio, de invenção, de encontro com o outro e com o mundo. É o espaço onde a criança exercita a autonomia — e, ao mesmo tempo, resguarda-se no colo simbólico do ambiente. A natureza é um objeto vivido, não meramente percebido — um palco de criatividade, elaboração psíquica e experiência estética .

Quando se afasta a criança desse espaço, cortam-se também os laços com suas próprias potencialidades de ser — afetam-se a espontaneidade, o brincar criativo, a capacidade de simbolizar.

10 formas reais e afetivas de reconectar a criança com a natureza, segundo Richard Louv

Inspirada nos estudos e reflexões de Richard Louv, esta lista propõe formas concretas, acessíveis e afetivas de reaproximar as crianças da natureza, mesmo em contextos urbanos ou com poucos recursos.

Mais do que atividades, são convites para que pais, educadores e cuidadores ofereçam à infância o direito de pertencer ao planeta: com os pés na terra, os sentidos despertos e a alma em diálogo com o mundo vivo. A reconexão com a natureza é também uma reconexão com o brincar, com a saúde emocional e com a potência criativa da criança. Confira:

1. Tempo livre na natureza – só estar, sem metas

Por quê: A natureza ensina melhor quando a criança não está sendo conduzida a aprender algo. É no “não fazer nada” que ela observa, se encanta e constrói uma relação íntima com o mundo.

Como fazer: Leve a criança a um parque, um quintal, um terreno baldio seguro ou uma praça arborizada. Deixe que ela explore por conta própria — sem brincadeiras estruturadas, sem cronômetro. Apenas diga: “vamos ver o que encontramos por aqui”. Exemplo: uma manhã de sábado sentada na grama observando formigas ou nuvens, sem pressa de voltar.

2. Cultivar um pequeno jardim — até mesmo em vasos

Por quê: Plantar é um ato de pertencimento. Ensina paciência, cuidado e a lógica do ciclo da vida. Além disso, cria laços com o alimento e com a terra.

Como fazer: Use latas, garrafas PET ou vasos para plantar manjericão, hortelã, tomatinho-cereja ou até mesmo flores comestíveis. Envolva a criança na rega, poda, colheita. Exemplo: “Esse manjericão aqui foi você que plantou. Que tal usarmos hoje no macarrão?”

3. Caminhadas sensoriais — natureza como presença viva

Por quê: O caminhar com intenção de observar desenvolve atenção plena e vínculo afetivo com o ambiente. Fortalece o senso de pertencimento.

Como fazer: Durante a caminhada, convide a criança a usar os sentidos: “Que cheiro é esse?”, “Quantos tons de verde você vê aqui?”, “Que som é esse lá longe?”. Sem pressa. Sem celular. Exemplo: Caminhar ao redor de um lago anotando em um caderno os sons escutados: “pássaro”, “vento”, “água batendo na pedra”.

4. Contação de histórias ecológicas – imaginação como ponte

Por quê: O simbólico prepara o terreno emocional para a ética do cuidado. Histórias com árvores que falam, rios que choram ou animais que cuidam do planeta despertam empatia ecológica.

Como fazer: Escolha livros infantis que tratem da natureza de maneira poética, como “A árvore generosa” ou “O menino do dedo verde”. Ou invente sua própria história inspirada no lugar onde estão. Exemplo: Inventar com a criança uma fábula sobre um tatu-bola que planta florestas escondido à noite.

5. Acampamentos simples – dormir sob o céu

Por quê: O acampamento, mesmo improvisado, cria uma experiência sensorial marcante. Estar ao relento fortalece a confiança no mundo natural.

Como fazer: Arme uma barraca no quintal ou até mesmo dentro de casa, com janelas abertas. Acenda uma lanterna, conte histórias, escute os sons da noite. Exemplo: Passar uma noite com cobertas sob a varanda do sítio, escutando os grilos e vendo as estrelas com um binóculo de brinquedo.

6. Fazer arte com elementos naturais – criar com o que a terra oferece

Por quê: A criatividade mediada pela natureza aprofunda o vínculo com o ambiente e desperta a percepção da beleza orgânica.

Como fazer: Recolher folhas, galhos, pedras, sementes e transformá-los em colagens, mandalas, pinturas com terra ou tintas naturais. Exemplo: Montar uma “mandala da semana” com folhas secas encontradas no chão do quintal.

7. Cuidar de pequenos animais – vínculo com o outro ser

Por quê: O cuidado cotidiano com outro ser vivo desenvolve empatia, compromisso e senso de responsabilidade emocional.

Como fazer: Pode ser um cão, gato, coelho, peixe ou até mesmo observar e alimentar passarinhos com comedouros feitos com garrafa PET. Exemplo: A criança molha as sementes da calopsita e observa seu crescimento, fazendo um “diário da ave”.

8. Cozinhar com ingredientes naturais — comida como ponte com a terra

Por quê: Participar do preparo da comida, entendendo de onde ela vem, fortalece laços com a terra e o corpo.

Como fazer: Leve a criança à feira. Mostre o pé de alface com raiz. Pergunte ao feirante de onde vem a mandioca. Depois, cozinhem juntos algo simples. Exemplo: “Sabia que essa batata cresceu debaixo da terra? Vamos cozinhar juntas e desenhar como ela nasce?”

9. Observar os ciclos da natureza – ensinar o tempo real

Por quê: A criança moderna está imersa em tempos artificiais. Observar os ciclos naturais ensina o ritmo da vida, da espera, da transformação.

Como fazer: Crie rituais mensais de contemplação da lua, do pôr do sol, da mudança das folhas, da chegada das chuvas. Exemplo: Fazer um “calendário da lua” com desenhos semanais da lua vista da janela de casa.

10. Desligar das telas – permitir o tédio como solo fértil

Por quê: O tédio é a mãe da criatividade. Quando a tela é desligada, o mundo interno e o mundo ao redor se tornam mais disponíveis.

Como fazer: Estabeleça tempos regulares de “desconexão” como ritual familiar: “hoje é o dia da natureza”. Crie um ambiente com livros, terra, sementes, papel e estímulos livres. Exemplo: “Por uma hora, sem celular nem TV. Vamos montar um abrigo de galhos e contar histórias inventadas lá dentro”.

Infância e planeta: interdependência decisiva

Reconectar a infância à natureza é também reconectar o humano consigo mesmo — e com um futuro possível. Se permitirmos que as crianças mergulhem no mundo natural, estaremos cultivando sujeitos que se sabem parte de algo maior; que sentem-se presentes no planeta e aptos a defendê-lo.

Que possamos lembrar os sentidos — o tato da terra, o canto das aves, o vento na pele — como condições de possibilidade para novas existências possíveis.

Fontes consultadas

  • Livro: A última criança na natureza –  de Richard Louv,Livro: A última criança na natureza –  de Richard Louv, (Last Child in the Woods) (2005)
  • Winnicott, Donald W., Playing and Reality (1971) — teoria do objeto/transitional space
  • Nature as a transitional object (artigo acadêmico) — articulação psicanalítica:natureza e teoria da transicionalidade
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