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10 maneiras de criar meninos não sexistas, segundo Maria Montessori

A violência de gênero, muitas vezes, é a culminação de processos invisíveis, silenciosos, que se fixam no caráter e no ambiente muito antes de um ato concreto. Para a pedagoga e médica Maria Montessori, em seu livro: “A formação do homem”, a infância é o terreno onde se moldam as personalidades e o ambiente preparado tem papel decisivo no desabrochar humano. Se queremos meninos que cresçam sem sexismo, que respeitem mulheres como iguais, precisamos intervir bem antes da puberdade: precisamos intervir no solo da infância, onde o “ser homem” é apenas uma promessa: seja de bondade ou de maldade.

Nos Brasil e no mundo, os números mostram que ainda estamos longe desse ideal. Internacionalmente, cerca de 1 em cada 3 mulheres experimentou violência física e/ou sexual ao longo da vida. No Brasil, focando nos extremos, em 2021 81,7% dos feminicídios foram perpetrados por parceiro ou ex-parceiro íntimo, e 65,6% das vítimas foram mortas em casa.

Outro dado: entre 2016 e 2020, mais de 34 918 mortes violentas de crianças e adolescentes (0-19 anos) foram registradas: mais de 6 970 por ano, somadas à incidência de cerca de 45 000 estupros anuais nesse período no país. Esses indicadores não apontam apenas para “atos isolados”, mas para uma cultura que tolera, desde cedo, a desigualdade, o controle e a falta de escuta. Logo, educar meninos para não sexismo é mais que um “bom hábito”: é investimento na prevenção da violência estrutural.

Montessori nos convida a olhar para o adulto e para o ambiente como co-formadores da personalidade: “ajuda dada para que a personalidade humana atinja a independência”. Se a violência nasce no íntimo, nas relações pequenas, nos gestos habituais, então o trabalho é criar ambientes e práticas que incutam respeito, autonomia, vulnerabilidade, cuidado e não dominação, norma rígida “de menino”, caricatura de masculinidade.

A seguir, apresento dez práticas – fora do senso comum – para educar meninos livres de sexismo, alinhadas à proposta montessoriana e à necessidade urgente de transformação social.

10 maneiras de educar meninos não sexistas

Segundo Montessori, a violência de gênero começa muito antes de se tornar ato; a prática da não-violência contra mulheres deve ser naturalizada desde a infância. E de acordo com os seus saberes, fizemos a seguinte lista que propõe formas práticas, cotidianas, para famílias, educadores e ambientes comunitários.

  1. Ambiente igualitário desde o início
    Prepare o lar, a sala de aula ou o espaço de convivência com brinquedos, tarefas e partes do cotidiano disponíveis para todos: meninos e meninas, sem rótulos de gênero. No método montessoriano, o ambiente é “terceiro professor” e deve promover autonomia, interesse real e exploração própria.
    Por quê? Se o menino cresce repetindo que “isso é para meninas” ou “aquilo é de menino”, ele internaliza desde cedo papéis que reforçam dominância ou segregação.
  2. Linguagem e reconhecimento de vulnerabilidade
    Ensine meninos a nomear emoções, a pedir ajuda, a reconhecer a fragilidade como humana. Use histórias onde personagens masculinos cuidam, choram, acolhem.
    Por quê? A cultura do “homem forte que não chora” alimenta a dissociação entre afetividade e masculinidade, abrindo caminho para agressões e repressões.
  3. Atividades de cuidado e responsabilidade compartilhada
    Estimule que meninos participem de tarefas domésticas, cuidados com plantas, animais ou irmãos. No método Montessori, atividades práticas fortalecem o sentido de pertencimento e de competência. Por quê? Quando o menino entende que cuidar é parte de ser humano, não de “ser menina”, ele internaliza uma ética de cuidado e reciprocidade.
  4. Modelagem de relacionamentos igualitários
    Pais, educadores e adultos devem mostrar no cotidiano como decisões são tomadas juntos, tarefas divididas e respeito mútuo é norma. Por quê? A criança aprende mais por imitação do que por sermões; se vê relações de poder verticalizada, internaliza poder e submissão como normal.
  5. Brincadeiras com reflexão e intervenção consciente
    Quando meninos brincam com encenações de controle ou violência (“sou o chefe, mando você”), o adulto intervém com perguntas: “O que essa cena está dizendo sobre as meninas? Como seria se o papel fosse invertido?” Por quê? A brincadeira não é neutra: ela espelha as relações sociais. Refletir essas cenas desde cedo ajuda a desautomatizar o domínio.
  6. Educação sobre corpo, limites e consentimento
    A conversa com meninos deve incluir seus corpos, seus limites, o respeito ao “não” e à autonomia das outras pessoas: tudo de forma clara, não constrangedora.
    Por quê? A cultura sexual violenta cultiva a confusão entre poder e desejo; trabalhar consentimento desde a infância é prevenção primária.
  7. Representações múltiplas de masculinidade e feminilidade
    Proporcione leituras, filmes, histórias com homens que cuidam, mulheres que lideram, comunidades que cooperam. Por quê? O repertório simbólico da criança forma seu imaginário de gênero. Quanto mais variado, mais possibilidades de identificação longe do estereótipo opressor.
  8. Trabalho de reparação, empatia e responsabilidade
    Quando houver erro ou conflito, ensine o menino a reconhecer dano, pedir desculpas, reparar. A agressão começa no pensar “eu mereço”, e o antídoto é “eu vejo o outro”.
    Por quê? A masculinidade normativa muitas vezes suprime o reconhecimento do outro como sujeito digno; cultivar empatia inverte esse paradigma.
  9. Envolver meninos como aliados na prevenção da violência
    Em espaços escolares ou comunitários, inclua meninos em iniciativas que promovam igualdade, cuidem de espaços, participem de projetos de cultura, meio-ambiente ou arte voltados à dignidade humana. Por quê? Quando meninos sentem que seu papel é ativo na criação de igualdade e não apenas “não violentar”, sua identidade se alinha à construção e não à defesa.
  10. Formação de adultos preparados com olhar de gênero e pedagogia montessoriana
    Educar para não sexismo não é tarefa apenas dos pais; requer professores, cuidadores e comunidade com formação, consciência e prática. Como Montessori afirmava, o adulto preparado é fundamental. Por quê? Sem adultos conscientes, ambientes preparados perdem potência e retornam a padrões tradicionais, invisíveis mas corrosivos.

Criar meninos não sexistas é um ato de coragem existencial

Na trajetória da vida, cada menino carrega em seu corpo e em seu ambiente sementes que germinarão em poder ou em cuidado. A psicanálise nos mostra que os vínculos infantis, as frustrações toleradas, o reconhecimento do próprio sujeito e a imagem do outro formam o alicerce de como ele se relacionará com o mundo. Se crescermos ensinando que o domínio é natural, que o controle é masculino e que o outro é objeto, estaremos preparando homens que reproduzem violência: e a violência se manifesta muito antes do golpe, está no silenciar, no silêncio, no hábito. Montessori nos lembra que a construção da personalidade não está apenas no “fazer” mas no “ser e conviver”. A não-violência contra mulheres não será mero cumprimento moral, ela será respiração natural de uma vida que reconhece o outro como sujeito, não como objeto.

Cultivar meninos não sexistas é, portanto, um ato de coragem existencial: aceitar que a masculinidade possa migrar de domínio para comunhão; que o poder possa ceder ao cuidado; que a força se possa traduzir em responsabilidade. É uma revolução silenciosa que começa no berço, no olhar, no ambiente, antes que o mundo externo a exija. E, como psicanalistas e educadores sabemos: o inconsciente coletivo da cultura não muda só por leis ou punições, mas por hábitos sentidos desde o ventre, interiorizados no sujeito que se torna. Se criarmos espaços onde os meninos possam ser humanos inteiros: vulneráveis, responsáveis, empáticos, estaremos abrindo não apenas uma nova geração, mas uma nova humanidade.

Que cada gesto cotidiano: uma pergunta feita, uma tarefa dividida, um brinquedo oferecido, seja semente de paz. Pois, como Montessori afirmava, “um dos perigos mais eminentes é ir contra a lei da natureza na educação da criança, sufocá-la e deformá-la sob o erro dos preconceitos comuns”. Se queremos que a sociedade futura seja de respeito, solidariedade e liberdade, é hoje, na infância, que devemos plantar.

Fontes pesquisadas

  • Montessori, Maria. The Formation of Man. Montessori-Pierson Publishing Company.
  • UNICEF & Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil (2016-2020).
  • Global database on Violence against Women and Girls.
  • World Bank. Gender-Based Violence Country Profile: Brazil.
  • The Guardian. “Violence against women in Brazil reaches highest levels on record”
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