Os megaesquemas de corrupção começam com pequenas mentiras para aliviar a consciência

O psicólogo Dan Ariely, da Universidade de Duke, nos EUA, aplicou testes de honestidade em 30 mil pessoas. Com dinâmicas diferentes, os testes permitiam aos participantes embolsar pequenas quantias de dinheiro ilegalmente. No fim do experimento, Ariely identificou 12 grandes trapaceiros que desviaram quantias maiores – US$ 150 no total, somados. Mas o que chamou a atenção foi o número de pequenos trapaceiros que roubaram pequenas quantidades: 18 mil pessoas embolsaram um total de U$ 36 mil – um prejuízo bem maior do que o causado por algumas poucas “maçãs podres”.

“Todo mundo mente”

Diz o cínico dr. House, o médico do seriado americano House interpretado pelo ator Hugh Laurie, em uma de suas máximas mais célebres, coberto de razão e, ironicamente, de sinceridade. Criamos o tempo todo, para nós e para os outros, pequenos embustes e desculpas para aliviar a consciência. Para Ariely, essa é uma consequência natural da nossa capacidade de racionalizar as coisas e os delitos. Quanto mais racionalizamos, mais relativizamos a moral – e os mais criativos costumam ser mais bem-sucedidos no processo.

As maiores infrações nascem do acúmulo de pequenos golpes

Nem toda mentirinha branca descamba em megaesquemas de corrupção, mas as maiores infrações, normalmente, nascem do acúmulo de pequenos golpes. “A maioria das pessoas, quando tem a chance de trapacear, acaba sendo antiética. Muitos não percebem que estão se corrompendo quando acontece aos poucos. É como ir aumentando os pesos na musculação: aumentando devagar é difícil notar”, diz Francesca Gino, professora da Universidade Harvard, nos EUA, parceira de Ariely.[…]

O que leva as pessoas a ceder à tentação? São muitas as variáveis, mas há boas pistas. Se por um lado estamos frequentemente sujeitos a ser desonestos, por outro apreciamos nos representar de maneira ética, com caráter nobre e reto. Isso pode levar tanto a relativizar deslizes morais quanto a realizar gestos desprendidos.[…]

A atitude de terceiros – a pressão social – tem papel fundamental nas escolhas morais. Em situações criadas pelos psicólogos, o índice de trapaças aumenta quando uma pessoa do grupo (no caso um ator infiltrado) assume para os participantes estar trapaceando. E diminui quando o ator trapaceiro age como alguém de fora do grupo. “É comum observar isso em situações de guerra, quando um soldado atribui uma violação moral em seu grupo às dificuldades da situação, mas ao mesmo tempo acusa o oponente, em situação semelhante, de ter agido por falta de caráter”, afirma Ayar Shayal, psicólogo da Universidade Duke. […]

O senso moral não nasce pronto

Desenvolve-se ao longo da vida. O processo civilizatório resulta da repressão de instintos primitivos incompatíveis com a vida em sociedade. Ao longo da evolução, as espécies buscam satisfazer seus desejos, desde os mais básicos aos mais complexos. Mas em algum momento esbarram na vontade do outro. A evolução inventou a moral para administrar os instintos e viabilizar a vida social. “Somos todos formados da mesma substância interna. O desejo de poder, de ganhar e de consumir constitui sentimentos humanos”, explica Gustavo Alarcão, psiquiatra e psicanalista do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Se por um lado a racionalização e a relativização flexibilizam os valores, o mesmo processo induz a um olhar mais honesto sobre nós mesmos. “Devemos evitar generalizações entre pessoas ‘mais normais’ e ‘mais boazinhas’. Devemos prestar atenção. Tentar eleger uma classe de pessoas mais corretas do que outras é a base do sistema totalitário”, afirma Alarcão. Quem nunca mentiu atire a primeira pedra.

Trecho do artigo “As duas faces do caráter” – de Camilo Gomide

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