Cultura

Ensine a criança a questionar o que a cultura naturaliza – Chimamanda Ngozi Adichie

Há tradições que curam, que preservam a memória e alimentam o pertencimento. Mas há outras que adoecem, que silenciam e mantêm gerações aprisionadas em papéis que já não cabem. Educar uma criança para o futuro é, antes de tudo, ensiná-la a questionar o que o passado naturalizou como verdade.

Essa é uma das lições mais poderosas da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, uma das vozes mais inspiradoras do feminismo contemporâneo. Chimamanda nos convida a olhar a cultura não como um destino imutável, mas como um campo vivo, que precisa ser constantemente revisitado à luz da liberdade e da igualdade.

Educar também é desnaturalizar o que oprime

Em seu livro: “Para educar crianças feministas – um manifesto”, a autora transforma uma carta a uma amiga que acabara de ter uma filha em um guia sensível e provocador sobre como criar crianças livres das amarras culturais que naturalizam a desigualdade.

Chimamanda afirma que nem toda tradição é boa apenas por ser antiga. Há costumes que nasceram de contextos de dominação, e se perpetuaram justamente porque deixamos de questioná-los. Ensinar uma criança a pensar criticamente sobre isso é dar-lhe um dos maiores presentes: a autonomia do pensamento.

O feminismo, segundo Chimamanda, não é uma ideologia a ser imposta, mas uma lente de discernimento que permite enxergar a humanidade com mais nitidez. É um convite à reflexão: por que ensinamos meninas a cuidar e meninos a mandar? Por que associamos o amor ao sacrifício das mulheres? Por que confundimos obediência com virtude?

Para Chimamanda, educar filhos e filhas na igualdade é romper com a cultura do “sempre foi assim”. É ter coragem de revisar crenças e comportamentos herdados, e ensinar que o verdadeiro respeito às tradições está em manter o que humaniza, não o que oprime.

15 conselhos de Chimamanda para educar crianças feministas

A educação como gesto de reparação. Educar crianças feministas é educar crianças emocionalmente inteiras. É ajudá-las a construir um mundo interno capaz de sustentar a liberdade sem medo. E isso só é possível quando os adultos também se permitem revisitar suas sombras, desaprender, reconstruir e recomeçar. Toda criança nasce com o potencial de igualdade. O que fazemos com esse potencial é o que define a cultura que deixaremos. Veja aqui 15 conselhos de Chimamanda para educar crianças feministas

1. Dê exemplo: seja uma mulher plena

A criança percebe, desde o início, se sua mãe vive uma vida com sentido ou apenas sobrevive para servir aos outros. Quando uma mãe apaga seus desejos, a criança aprende a calar os próprios. Ser uma mãe plena é ensinar, pelo exemplo, que cuidar de si não é egoísmo, é o primeiro gesto de amor real. Uma mãe que se respeita transmite ao filho a experiência simbólica de que é possível existir sem se anular.

2. Crie a criança para ser uma pessoa, não um gênero

Desde cedo, meninos e meninas são tratados como se pertencessem a mundos distintos. Enquanto uns são encorajados à coragem, outras são conduzidas à docilidade. Ensinar a criança a ser humana é libertá-la dessa cisão primária. Diga a um menino que ele pode ser cuidadoso. Diga a uma menina que ela pode ser corajosa. Assim, o sujeito aprende que força e ternura não são polos opostos, mas dimensões complementares da humanidade.

3. Questione os papéis de gênero

O inconsciente familiar é o primeiro território político. Quando o pai “ajuda” a mãe nas tarefas domésticas, a criança introjeta a ideia de que o cuidado é função materna. Quando ambos cuidam da casa e um do outro, o que se introjeta é a parceria. A igualdade se aprende na repetição dos gestos cotidianos, não nos discursos. A criança internaliza o que observa e o faz com uma fidelidade impressionante.

4. Ensine a igualdade de direitos como valor inegociável

A igualdade de direitos entre os gêneros não é uma ideologia: é uma vivência emocional. Começa quando a criança percebe que sua voz é ouvida com o mesmo respeito, independentemente do gênero. Isso se aprende nas pequenas situações, ao dividir brinquedos, decidir brincadeiras, opinar sobre o jantar. Cada vez que ela é ouvida, sente-se reconhecida como sujeito. E o reconhecimento é o primeiro alimento da autoestima.

5. Ensine a trabalhar e a ter independência

A criança que vê a mãe depender emocional e financeiramente de outros pode aprender que o amor é uma forma de subordinação. Valorizar o trabalho e o estudo é mostrar que o afeto é escolha, não necessidade. É importante que as crianças saibam que o amor é mais verdadeiro quando nasce do desejo, não da dependência.

6. Dê exemplo no cuidado com palavras

As palavras são sementes no inconsciente. Quando elogiamos apenas a beleza de uma menina, ensinamos que o corpo vale mais do que o pensamento. Quando elogiamos apenas a coragem de um menino, negamos a ele o direito à sensibilidade. Diga: “você foi generosa”, “você pensou com empatia”, “você teve uma boa ideia”. São frases que constroem uma autoestima baseada no ser, não no parecer.

7. Ensine o respeito pelos sentimentos

As emoções não têm gênero, mas a cultura as sexualizou. Meninos são ensinados a conter, meninas a suportar. Ambos adoecem. Ensine seu filho que chorar é humano; ensine sua filha que dizer “não” é humano. Quando a criança reconhece seus sentimentos, aprende também a respeitar o do outro. É o início da verdadeira empatia e da reparação emocional.

8. Ensine a questionar o que a cultura naturaliza

Nem toda tradição é saudável apenas por ser antiga. Questione. Explique à criança por que certas “brincadeiras” machucam, por que certas piadas reforçam desigualdades, por que certos costumes não cabem mais. Isso não destrói a cultura, purifica-a. A cultura viva é aquela que se reinventa, não a que sufoca. Ensinar a pensar criticamente é libertar o olhar do automatismo da repetição.

9. Reveja os papéis familiares

A forma como os adultos se relacionam entre si é a primeira aula sobre gênero. Uma criança que vê o pai lavar a louça sem precisar ser aplaudido e a mãe decidir o futuro financeiro da casa sem culpa, cresce com a ideia de que parceria é natural. Nessa casa, a igualdade deixa de ser discurso e vira cenário interno, um espelho emocional que acompanhará o sujeito por toda a vida.

10. Estimule o pensamento crítico

Crianças são naturalmente curiosas. O problema é que nós, adultos, ensinamos a obediência antes da reflexão. Quando ela pergunta “por que?”, não é insolência: é busca de sentido. Resista à vontade de encerrar o diálogo. Uma criança que aprende a pensar por conta própria torna-se um adulto capaz de resistir às violências simbólicas do mundo.

11. Desconstrua a busca por relacionamento como meta de felicidade

Desde cedo, muitas meninas são educadas para o amor como se fosse um troféu, e muitos meninos para a conquista como se fosse um direito. Ensine que a realização pessoal não depende de encontrar “a metade da laranja”, mas de sentir-se inteira. O amor deve ser adição, não substituição. Quando a criança aprende isso, cresce sem a angústia de precisar ser escolhida, aprende a escolher.

12. Fale sobre o direito sobre o próprio corpo

O corpo é o primeiro território de autonomia. Ensine à criança que ninguém tem o direito de tocá-la sem consentimento. Ensine-a também a respeitar o corpo do outro. Quando o corpo é nomeado e respeitado, o sujeito se sente dono de si e a vergonha deixa de ser instrumento de controle. Falar de corpo é falar de dignidade.

13. Estimule a leitura

Os livros são experiências simbólicas que ampliam o eu. Quando uma criança lê, ela empresta sua psique aos personagens e aprende a sentir o mundo a partir de outras perspectivas. Dê a ela histórias com meninas valentes, meninos cuidadosos, pessoas diversas. A literatura é a primeira escola da empatia.

14. Promova a solidariedade entre meninas

A rivalidade feminina é uma invenção patriarcal. Ensine às meninas que o brilho de uma não apaga o da outra. E ensine aos meninos a não ver o sucesso das mulheres como ameaça. A solidariedade é uma reparação histórica: o retorno do vínculo cooperativo que foi rompido pela lógica da competição.

15. Ensine o feminismo como amor

O feminismo não é guerra entre gêneros, é reconciliação entre seres humanos. Ensinar o feminismo é ensinar que a liberdade de um não precisa significar a opressão do outro. É mostrar que o poder pode ser compartilhado, e que a verdadeira força está em cuidar, não em dominar.

Desaprender também é um ato de amor

Educar uma criança feminista é, antes de tudo, ensinar a desaprender. Desaprender preconceitos, estereótipos e desigualdades herdadas. É construir uma educação que não teme o questionamento, que aceita o desconforto de rever crenças e que transforma o pensamento crítico em ferramenta de empatia.

Chimamanda nos lembra que as tradições são vivas, e como tudo o que é vivo, podem evoluir. Ao educar uma criança para pensar, sentir e agir com liberdade, plantamos a semente de uma cultura mais justa — uma cultura que não teme o novo, porque entende que a verdadeira tradição é aquela que se renova em nome da vida.

Referência bibliográfica

Livro: “Para educar crianças feministas: um manifesto” – Chimamanda Ngozi

Portal Raízes

As publicações do Portal Raízes são selecionadas com base no conhecimento empírico social e cientifico, e nos traços definidores da cultura e do comportamento psicossocial dos diferentes povos do mundo, especialmente os de língua portuguesa. Nossa missão é, acima de tudo, despertar o interesse e a reflexão sobre a fenomenologia social humana, bem como os seus conflitos interiores e exteriores. A marca Raízes Jornalismo Cultural foi fundada em maio de 2008 pelo jornalista Doracino Naves (17/01/1949 * 27/02/2017) e a romancista Clara Dawn.

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