Categories: Literatura

Sejamos simples e calmos como as árvores – Por Fernando Pessoa

Alberto Caeiro, personagem de Fernando Pessoa, nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo numa Quinta do Ribatejo e aí escreveu “O Guardador de Rebanhos”, “O Pastor Amoroso” e “Os Poemas em Conjunto”. Para Caeiro, só existe a realidade mesma palpável, visível, percebida pelos sentidos. A natureza, para ele, é perfeita, “ela não sabe o que faz”, não pensa e “por isso não erra e é comum e boa”.

Segundo o poeta, “o único sentido das coisas – é elas não terem sentido íntimo algum”. Ao negar o mistério das coisas, Alberto Caeiro se torna diferente de todos os outros heterônimos e do próprio Fernando Pessoa e seu discípulos; ele não quer que a interferência da memória ou do pensamento no seu contato com a Natureza.

Caeiro é, antes de tudo, anticristão. Na verdade, o saber e a crença de Alberto Caeiro estão ligados à Natureza e à vida simples no Ribatejo, e ele termina enquadrando Deus nessa concepção de vida:

Mas se Deus é as flores e árvores
e os montes e sol e o luar,
então acredito nEle,
então acredito nEle a toda a hora,
e a minha vida é toda uma oração e uma missa,
e uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
Mas se Deus é as árvores e as flores
e os montes e o luar e o sol,
para que Lhe chamo eu Deus?

[…]

É que Ele quer que eu O conheça
como árvores e montes e flores e luar e sol.
E por isso eu obedeço-Lhe […]
obedeço-Lhe a viver, espontaneamente,
como quem abre os olhos e vê,
e chamo-Lhe luar e sol e flores
e árvores e montes
e amo-O sem pensar nEle,
e Penso-O vendo e ouvindo,
e ando com Ele a toda a hora.

Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
porque Deus quis que O não conhecêssemos,
por isso Se não nos mostrou…

Sejamos simples e calmos,
como os regatos e árvores,
e Deus amar-nos-á fazendo de nós
belos como as árvores e os regatos,
e um rio aonde ir ter quando acabemos!…
[…]

Da mais alta janela da minha casa
com um lenço branco digo adeus
aos meus versos que para
a humanidade

E não estou alegre e nem triste.
Esse é o destino dos versos[…]
Ide, ide de mim!
Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre […]
Passo e fico, como o Universo.
[…]

(Fragmentos extraídos do livro “Fernado Pessoa – Obra poética II” – Organização: Jane Tutikian – Editora L&PM, Porta Alegre – RS, 2006).

 

Portal Raízes

As publicações do Portal Raízes são selecionadas com base no conhecimento empírico social e cientifico, e nos traços definidores da cultura e do comportamento psicossocial dos diferentes povos do mundo, especialmente os de língua portuguesa. Nossa missão é, acima de tudo, despertar o interesse e a reflexão sobre a fenomenologia social humana, bem como os seus conflitos interiores e exteriores. A marca Raízes Jornalismo Cultural foi fundada em maio de 2008 pelo jornalista Doracino Naves (17/01/1949 * 27/02/2017) e a romancista Clara Dawn.

Recent Posts

O açúcar é como o álcool para crianças, danifica o fígado e o cérebro

Os pesquisadores demonstraram que o açúcar consumido pelos pequenos pode fazer tão mal ao fígado…

5 dias ago

Como os casinos online imitam o luxo dos estabelecimentos físicos

Os casinos online avançaram muito para além de interfaces simples e poucos recursos. Hoje, os…

6 dias ago

11 feridas que a filha não amada por sua mãe carrega até a vida adulta

A relação entre mãe e filha é um dos vínculos mais profundos e complexos na…

2 semanas ago

Depois dos 50 é preciso tomar a vacina contra o herpes-zóster

Herpes Zoster é uma doença que aparece na pele, causada pelo Vírus Varicela-Zoster (VVZ), o…

2 semanas ago

“Quanto mais inteligente é uma pessoa, menos sociável ela é”- Por Leandro Karnal

O professor Leandro Karnal, no vídeo “Ler é viver”, reflete sobre a relação entre cultura,…

2 semanas ago

“É através do brincar livremente que a criança elabora angústias primitivas e organiza sua vida emocional” – Melanie Klein

Em uma época em que as telas dominam o cotidiano, as crianças estão gradualmente desaprendendo…

2 semanas ago