“Economizar água, comer orgânicos, andar de bicicleta… nada disso vai diminuir a velocidade com que esgotamos os recursos naturais. Nós não fazemos falta à Terra — pelo contrário, somos a praga que veio para devorá-la”. Essa é uma paráfrase livre, porém fiel, de reflexões presentes na obra A vida não é útil, do pensador indígena, ambientalista e filósofo brasileiro Ailton Krenak. Com uma lucidez que incomoda e desperta, Krenak nos convida a encarar um abismo civilizatório que há muito tempo se abre diante de nós — mas que fingimos não ver.
Líder indígena do povo Krenak, nascido às margens do Rio Doce, em Minas Gerais, Ailton tornou-se uma das vozes mais respeitadas do pensamento crítico brasileiro. Seu discurso na Assembleia Constituinte de 1987. Pintando o rosto com jenipapo em plena tribuna — marcou simbolicamente a luta pela dignidade e pela cosmovisão dos povos originários.
Mas o que o torna ainda mais essencial é sua capacidade de provocar uma mudança de eixo no pensamento contemporâneo: sair do centro humano para retornar ao comum da vida — à Terra, à interdependência, à humildade diante do mundo.
No livro que leva esse título, Ailton desfaz a ilusão de que a vida precisa ter uma finalidade prática, produtiva, mensurável. Ele denuncia que o discurso da sustentabilidade tão romantizado pelo capitalismo verde é, em muitos casos, apenas um enfeite sobre o mesmo sistema destrutivo de sempre.
A ideia de que mudar hábitos individuais como: consumir alimentos orgânicos ou usar bicicleta, seria suficiente para salvar o planeta é desmascarada por ele como uma forma de autoengano coletivo. Estamos apenas retardando uma lógica de destruição que permanece intacta: a crença de que o planeta é um recurso a ser explorado, e não uma casa a ser habitada em comunhão.
Ailton Krenak, assim como Edgar Morin ou Zygmunt Bauman, nos provoca a refletir sobre o tipo de humanidade que escolhemos ser. Vivemos em uma era em que tudo se tornou descartável: os objetos, os vínculos, as emoções, o planeta.
Bauman chamaria isso de modernidade líquida, onde nada se sustenta e tudo escorre entre os dedos. Morin, por sua vez, apontaria o colapso da complexidade: uma civilização que fragmentou a vida em pedaços úteis, medidos, automatizados, esquecendo que viver exige vínculo, presença, cuidado.
Krenak traduz isso em linguagem ancestral e direta: “nós não fazemos falta à Terra” — ou seja, ao contrário do que nos ensinaram, a Terra não precisa de nós, mas nós dela. E, mesmo assim, seguimos vivendo como se pudéssemos nos desconectar dela sem consequências.
Para Krenak, não há futuro possível sem ancestralidade — não como passado perdido, mas como memória viva que nos convoca à responsabilidade. A vida, diz ele, não é um projeto a ser cumprido, mas um milagre a ser fruído. Um milagre que não precisa de utilidade, mas de sentido.
Bauman diria que a crise contemporânea é, antes de tudo, uma crise de vínculos: conosco, com o outro e com o planeta. Morin diria que precisamos recuperar a ternura, a ética do cuidado, a consciência do todo.
Krenak diz o mesmo, mas com outras palavras: “A vida não é útil.” E enquanto seguirmos acreditando que tudo deve ter um propósito econômico, continuaremos sendo a praga que veio devorar o mundo — e a nós mesmos.
Fontes:
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