Em uma sociedade que constantemente exige produtividade, autocontrole e positividade, é desconcertante — e doloroso — admitir a própria fragilidade. Pior ainda, ser dominado por um comportamento compulsivo que desafia a razão e a vontade. No entanto, é justamente aí que o médico húngaro-canadense Gabor Maté lança luz com rara lucidez e empatia: ele afirma que o vício não é uma escolha ou falha moral, mas uma resposta compreensível à dor psíquica não reconhecida e não tratada.

Em seu livro In the Realm of Hungry Ghosts: Close Encounters with Addiction (No Reino dos Fantasmas Famintos: Encontros Íntimos com o Vício), Maté apresenta décadas de experiência clínica com dependentes químicos em Vancouver, especialmente entre pessoas em situação de rua, envolvidas com substâncias como heroína, cocaína e metanfetaminas. Mas sua abordagem ultrapassa a clínica médica: ele adentra o campo da neurociência, da psicologia do desenvolvimento, da sociologia e da psicanálise para afirmar com coragem — e compaixão — que comportamentos viciosos e/ou compulsivos são tentativas de aplacar uma dor emocional antiga, profunda e muitas vezes inconsciente.

Ele nos convida a reformular a pergunta que normalmente fazemos: “Não se trata de perguntar ‘por que o vício?’, mas sim ‘por que a dor?’”

Essa dor, segundo Maté, nasce quase sempre de rupturas afetivas precoces, traumas infantis, negligência emocional, perdas, abusos ou da ausência de um ambiente suficientemente seguro para a psique em formação. Ao invés de culpar, ele propõe compreender; ao invés de isolar, acolher; ao invés de castigar, cuidar.

5 caminhos para tratar o vício abordando a dor da alma

1. Investigação compassiva do trauma (Compassionate Inquiry)

Maté propõe uma abordagem clínica em que o paciente, guiado por um profissional ou por sua própria consciência desperta, investiga com gentileza suas emoções e reações. O objetivo não é eliminar o vício rapidamente, mas compreender o que ele protege, o que ele alivia, qual dor profunda ele silencia.

2. Desenvolvimento da autocompaixão

Em muitos pacientes, o vício é acompanhado de culpa, vergonha e autoaversão. Maté mostra que essas emoções agravam o ciclo da compulsão. Ao cultivar a autocompaixão, o indivíduo aprende a tratar a si mesmo não como um inimigo, mas como alguém ferido e digno de cuidado.

3. Reconexão com a criança emocional ferida

Na raiz do vício há, frequentemente, uma criança que não foi ouvida, protegida, amada. Esse trabalho terapêutico — comum à psicanálise e às abordagens de Maté — permite à pessoa se reconectar com suas partes infantis, integrando experiências dissociadas e reconstituindo sua identidade emocional.

4. Criação de vínculos afetivos verdadeiros

O isolamento é um dos principais fatores que alimentam o vício. O autor destaca que a conexão humana autêntica é o verdadeiro antídoto. Construir redes de apoio, vínculos familiares restaurados e comunidades empáticas pode ser tão importante quanto medicamentos e internações.

5. Redução de danos e mudanças no ambiente

Maté defende políticas públicas que tratem o dependente como um ser humano digno de proteção e cuidados. Estratégias de redução de danos, como acesso a materiais seguros, ambientes acolhedores e apoio psicológico, oferecem condições reais para que o indivíduo deseje — e possa — transformar sua trajetória.

Como ajudar quem está sofrendo — e suas famílias

Se você ama alguém que sofre com o vício, entenda que essa pessoa não está sendo fraca ou má: ela está tentando sobreviver a algo que talvez nem consiga nomear. Ouvir sem julgar, manter a presença afetiva, buscar ajuda especializada com abordagens baseadas em compaixão e vínculo, são atitudes que podem fazer a diferença.

As famílias também precisam de cuidado. Muitas vezes, convivem com o medo, o luto simbólico, a raiva e a culpa. Buscar grupos de apoio, psicoterapia e informação é fundamental para que se tornem redes de acolhimento e não de pressão, favorecendo não só o tratamento do familiar em sofrimento, mas sua própria saúde emocional.

Conclusão

O trabalho de Gabor Maté é um chamado à nossa humanidade. Ele nos convida a olhar para os vícios — não com o olhar moralista, mas com os olhos da alma: olhos que reconhecem o sofrimento onde há comportamento disfuncional, e que estendem a mão onde antes se apontava o dedo. O vício, afinal, é uma linguagem. Uma linguagem do corpo, da alma e da história. Traduzir essa linguagem com empatia talvez seja o primeiro passo para que o faminto encontre paz.

Fontes






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