Durante séculos, a mulher foi definida não por si mesma, mas pelo olhar do outro — do pai, do marido, da religião, da cultura. Silenciada, subjugada, instrumentalizada, foi reduzida a um papel de reprodutora, cuidadora e corpo a serviço da ordem patriarcal. No entanto, mesmo entre as sombras da submissão e do esquecimento, a mulher nunca deixou de pensar, de desejar, de sonhar.
A história da mulher é a história do desenraizamento da própria voz. Na Grécia Antiga, enquanto os homens discutiam política na ágora, as mulheres sequer podiam entrar nos espaços públicos. Na Idade Média, eram vistas como perigosas por sua intuição e sabedoria — não à toa, foram queimadas como bruxas. Já na modernidade, mesmo ao ingressar nas universidades e no mercado de trabalho, o fazer feminino ainda era rotulado como secundário, emocional ou frágil.
O sistema patriarcal não apenas calou as mulheres, mas construiu moldes para que elas se sentissem erradas por existir fora deles. Moldes de beleza, de maternidade, de sexualidade, de comportamento. Moldes que tentam conter o que é, por natureza, livre e múltiplo.
Mas há mulheres que foram rasgadas — pela dor, pela violência, pela exclusão — e ainda assim se reconstruíram com suas próprias mãos, lágrimas e sabedoria intuitiva. Essas mulheres não se deixam mais dobrar. Elas não cabem. Elas transbordam.
Clarissa Pinkola Estés e a mulher que corre com os lobos
É nesse cenário de resgate da subjetividade feminina que a obra de Clarissa Pinkola Estés ganha potência e fôlego transformador. Psicanalista junguiana, poeta e contadora de histórias, Clarissa é autora do best-seller internacional “Mulheres que Correm com os Lobos: mitos e histórias do arquétipo da Mulher Selvagem”, publicado em 1992.
Nesse livro, ela resgata contos populares, mitos e narrativas orais de diferentes culturas para revelar o que há de instintivo, criativo, intuitivo e sagrado no feminino. Sua proposta não é moralizante nem didática, mas simbólica e arquetípica: a mulher precisa reencontrar a “Mulher Selvagem” dentro de si, aquela que não se deixa domar pelos códigos sociais, que sente o chamado do lobo interior, que sabe ouvir seus sonhos e pressentimentos.
Histórias como a de La Loba, a mulher que recolhe ossos no deserto e os ressuscita com seu canto, ilustram o poder da mulher que, mesmo despedaçada, se reconstrói. Clarissa nos mostra que a cura da mulher passa pelo resgate de sua linguagem simbólica, de sua autonomia psíquica e de sua ancestralidade esquecida.
A frase que inspira este artigo — “Não se pode domar uma mulher que foi rasgada e se costurou sozinha” — é uma síntese perfeita da jornada que Clarissa propõe: a mulher que renasce de si mesma já não serve a moldes. Ela é força própria, caminho próprio, voz própria.
Sororidade, empoderamento e o direito de ser inteira
O empoderamento feminino não é apenas uma palavra da moda: é um processo psíquico, social e político de devolução da dignidade e da inteireza a todas as mulheres. Ele ocorre quando a mulher se reconhece como sujeito — de sua história, de seu corpo, de seus afetos. E mais: quando ela se reconhece em outras mulheres, nasce a sororidade — essa aliança entre diferentes que compartilham feridas, esperanças e lutas.
Empoderar-se é lembrar-se de que não há nada de errado em ser intensa, sonhadora, corajosa ou contraditória. É romper o ciclo da culpa, do silêncio e da comparação. É dizer “basta” aos moldes que nos sufocam — e ao mesmo tempo erguer outras mulheres com a mesma delicadeza com que cuidamos de nós.
Mulheres que se costuraram sozinhas não apenas sobreviveram. Elas se tornaram pontes para outras. E juntas, não serão domadas.
Fontes e leituras complementares:
- Pinkola Estés, Clarissa. Mulheres que Correm com os Lobos. Rocco, 1994.
- ONU Mulheres – Igualdade de Gênero e Empoderamento
- Biblioteca Nacional Digital – História das Mulheres
- Instituto Patrícia Galvão – Estudos e dados sobre violência e direitos das mulheres
- Artigo acadêmico: “A mulher e o patriarcado: uma leitura crítica”, disponível na Scielo