Na maior operação policial dos últimos quinze anos, o Rio de Janeiro amanheceu entre o medo, o luto e o espanto moral. A cidade parece encenar, mais uma vez, a tragédia que Freud previu: o fracasso da civilização em domar a violência que habita o próprio homem.
Na madrugada desta terça-feira (28), cerca de 2.500 agentes das polícias Civil e Militar invadiram os complexos do Alemão e da Penha, transformando territórios de gente em território de guerra. O saldo oficial fala em 64 mortos: 60 suspeitos e 4 policiais, mas relatos de moradores elevam o número a mais de 120 vidas interrompidas. A Defensoria Pública fala em até 132 mortos, o que faz dessa operação a mais letal em uma geração.
Não é apenas uma estatística. É o sintoma de um país que naturalizou a morte como método e o medo como forma de governo.
A barbárie como rotina
Durante as horas de confronto, o Rio reviveu sua neurose coletiva. Ruas bloqueadas, escolas fechadas, ônibus incendiados. O som dos tiros rasgava a madrugada como um grito do inconsciente nacional: segurança e paz não se conquista com normalização da violência.
Os vídeos feitos por moradores mostram corpos sendo carregados por vizinhos, revelando que o Estado está presente apenas para matar, nunca para socorrer. O desamparo é o mesmo que Freud descreveu: o desamparo integral é real quando o “pai simbólico”, neste caso, o Estado, se revela mais punitivo do que protetor.
A pulsão de morte do Estado
O governo estadual chamou de “necessária” a operação que prometia combater o “narcoterrorismo”, mas quando o Estado fala em combate, mas silencia as vitimas, o inimigo deixa de ser o crime e passa a ser o pobre, o periférico: o não comensal do sistema.
Freud já dizia que a civilização só pode erguer sobre a renúncia de impulsos destrutivos, mas no Brasil, o pacto civilizatório se rompeu. A pulsão de morte deixou de ser reprimida: ela é institucionalizada, uniformizada e legitimada. Ela agora tem porte de arma, colete e justificativa moral.
O superego social e a culpa do silêncio
Enquanto autoridades trocam acusações e justificativas, há no inconsciente social uma cumplicidade silenciosa com a violência: um gozo perverso em ver a punição do outro. Essa cumplicidade é o que Freud chamaria de o triunfo do superego sádico: o prazer de punir em nome da ordem. Uma sociedade que goza com a punição, mesmo quando ela atinge inocentes, revela que perdeu o vínculo com o laço social inato aos seres humanos.
Entre o desamparo e a resistência
Para as famílias das vítimas, o luto é solitário. O Estado chega apenas para registrar o óbito, jamais para reparar o trauma. A favela, então, repete sua função simbólica: ser o espelho em que a nação não quer se ver. E, ainda assim, há resistência. Nos becos e vielas, entre o medo e o cansaço, floresce o instinto de vida, insistindo em existir, em cuidar, em chorar, em reconstruir.
O mal-estar de um país que não sublima
O que se vê no Rio de Janeiro não é apenas uma operação policial. É o retrato cru do mal-estar brasileiro: uma civilização cujas politicas ao invés de investir em educação, investe em truculência.
Freud nos ensinou que a civilização se sustenta sobre a renúncia pulsional: um pacto que limita o gozo individual em nome da convivência coletiva. Mas quando o Estado, que deveria ser o guardião desse pacto, se entrega à pulsão de morte, o laço social se rompe. A guerra, então, deixa de ser contra o crime e passa a ser contra o próprio inconsciente da nação: um inconsciente que recusa reconhecer o outro como semelhante.
Nessa lógica perversa, o “narcoterrorista” é o novo espantalho que autoriza o gozo sádico de punir. O superego social, inflamado pelo medo e pelo discurso de ordem, exige sangue como prova de obediência. E assim, o Estado que se diz civilizado revela sua face arcaica, regida não pelo princípio de realidade, mas pelo retorno do mais primitivo dos impulsos: o prazer em matar o que se teme e não se quer ver.

