Desde muito cedo, antes mesmo de dominar as palavras, as crianças demonstram um desejo genuíno de participar do mundo dos adultos. Querem varrer, guardar, mexer nas panelas, limpar o chão, não por obrigação, mas por prazer. Esse impulso, que muitos pais interpretam como “curiosidade bagunceira”, é, na verdade, uma das manifestações mais puras da inteligência social inata.

Em uma sociedade acelerada e hipercontrolada, onde tudo precisa ser eficiente e limpo, o tempo da infância é frequentemente interrompido por frases como “deixa que a mamãe faz” ou “você vai quebrar isso”. Mas o que a ciência vem mostrando, desde o trabalho de Harriet Lange Rheingold, nos anos 1980, até as pesquisas contemporâneas em psicologia do desenvolvimento, é que as crianças pequenas têm um impulso natural para cooperar. E quando esse impulso é acolhido, florescem empatia, autoestima e senso de pertencimento.

Nasce a criança, nasce a cooperação 

Harriet Rheingold (1918–2000) foi uma psicóloga norte-americana pioneira em observar o comportamento pró-social em crianças muito pequenas. Em seu estudo clássico “Little Children’s Participation in the Work of Adults” (1982), ela observou bebês de 18 a 30 meses se oferecendo espontaneamente para ajudar os adultos a limpar, guardar ou organizar objetos, sem nenhuma recompensa.

Rheingold descreveu que o desejo de ajudar não nasce de regras, nem de reforço externo, mas de um impulso genuíno de pertencer e contribuir. Ou seja, a criança participa não para “ganhar algo”, mas porque se sente viva e útil no vínculo com o outro.

Décadas depois, estudiosos como Michael Tomasello e Felix Warneken, do Instituto Max Planck, confirmaram experimentalmente essa intuição de Rheingold: recompensar crianças por ajudar pode, paradoxalmente, reduzir o desejo de ajudar. O motivo? A recompensa substitui o prazer intrínseco da cooperação por um interesse extrínseco, aquilo que a psicologia chama de efeito sobrejustificação.

Assim, Rheingold nos convidou a um olhar revolucionário: o bebê não é um pequeno ego treinável, mas um ser relacional, com desejo de contribuir. Quando o adulto permite que a criança participe, ele não apenas ensina uma tarefa, ele reconhece um sujeito.

A pedagogia da cooperação

Antes de Rheingold, Maria Montessori já intuía, de forma quase poética, que o trabalho cotidiano era uma das expressões mais ricas do desenvolvimento infantil. Em suas “Casas das Crianças”, criadas no início do século XX, Montessori observava que a criança que varre, que cuida das plantas ou que ajuda a arrumar a mesa não está apenas “brincando de adulto”, está construindo seu caráter.

Para Montessori, o ato de colaborar com o mundo real era a base da educação moral e emocional. A criança aprende que o cuidado é uma forma de amor em movimento, e que a casa, a escola e a comunidade são extensões do seu próprio eu.

Ambas, Rheingold e Montessori, apontaram na mesma direção: a cooperação não se ensina com discursos, mas com convivência e oportunidade.

5 maneiras práticas de deixar a criança ajudar nas tarefas de casa

Antes de listar as ideias, vale lembrar: o objetivo não é transformar a criança em “mini ajudante”, mas permitir que ela se sinta parte da vida familiar, de forma lúdica, respeitosa e coerente com sua idade.

A seguir, cinco maneiras simples e eficazes de cultivar esse impulso natural:

1. Convide, não ordene

Em vez de “você tem que ajudar”, diga: “Quer vir comigo guardar as frutas?”. O convite cria vínculo, e o vínculo desperta cooperação.

Exemplo: ao arrumar a mesa, ofereça à criança a tarefa de colocar os guardanapos ou os talheres de plástico.

2. Adapte o ambiente ao tamanho da criança

Montessori chamava isso de “ambiente preparado”: se a vassoura é menor, o pano está ao alcance e os objetos são leves, a criança sente que pode agir.

Exemplo: mantenha um paninho e uma vassourinha na altura dela para que limpe respingos ou migalhas.

3. Valorize o esforço, não o resultado

Louve a intenção: “Que bonito ver você ajudando a cuidar da casa!” e não apenas o resultado (“ficou limpo”). Assim, ela associa a ajuda ao prazer de participar, não ao desempenho.

Exemplo: mesmo que o pano fique torto, agradeça pela tentativa.

4. Transforme tarefas em rituais afetivos

Cuidar da casa pode ser uma forma de brincar juntos. Colocar uma música, cantar enquanto dobram roupas ou regar as plantas pode se tornar uma rotina de encontro.

Exemplo: crie um “momento das flores” para que ela borrife água nas plantas toda manhã.

5. Dê significado às tarefas

Explique o porquê: “Quando guardamos os brinquedos, a sala fica pronta para brincar de novo amanhã.” Isso ensina causalidade e responsabilidade.

Exemplo: ao pedir que ajude a dar comida ao cachorro, fale sobre a importância de cuidar de quem depende de nós.

Esses pequenos gestos não servem apenas para “ensinar a ajudar”, mas para alimentar a confiança, a empatia e a autonomia, sementes da saúde emocional.

Em resumo

De Rheingold a Montessori, a lição é clara: a cooperação nasce antes da linguagem, e floresce quando o adulto acredita na potência da criança. Ao permitir que ela participe da vida real, nós não apenas formamos hábitos, formamos vínculos.

A criança que ajuda com alegria é a mesma que, mais tarde, saberá cuidar do outro e do mundo com responsabilidade e afeto.

Fontes consultadas

  • Rheingold, H. L. (1982). Little Children’s Participation in the Work of Adults. Child Development, 53(1), 114–124.
  • Rheingold, H. L., & Hay, D. F. (1980). Prosocial behavior of the very young. In The Development of Prosocial Behavior. Academic Press.
  • Warneken, F., & Tomasello, M. (2008). Extrinsic rewards undermine altruistic tendencies in 20-month-olds. Developmental Psychology, 44(6), 1785–1788.
  • Alcalá, L., Rogoff, B. et al. (2014). Children’s initiative in contributions to family work in indigenous-heritage and cosmopolitan communities in Mexico. Human Development, 57(2–3), 96–115.
  • Montessori, M. (1949). A mente da criança. São Paulo: Martins Fontes.
  • Portal Raízes (2025). Crianças pequenas querem ajudar em casa. Disponível em: www.portalraizes.com.





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