Vivemos em um tempo em que muitos adultos esqueceram o que é ser criança. Pior ainda: há uma verdadeira “criançafobia” — uma aversão ao modo de ser infantil — que vem sendo explorada pela indústria farmacêutica. É frequente que comportamentos típicos da infância sejam medicalizados: inquietação, barulho, curiosidade passarem a ser rotulados como “transtorno”.
Essa patologização é uma violação grave na formação do psiquismo infantil. Não estou afirmando que crianças silenciosas são infelizes — cada criança é um cosmos único. No entanto, meu olhar clínico — calibrado pela escuta atenta dessas vidas em formação — mostra que a criança mentalmente sadia pulsa com energia: seu corpo e cérebro produzem neurotransmissores de alegria, de amoroso impulso, de curiosidade. Ela grita, faz perguntas, inventa, corre, chama atenção — e isso é linguagem profunda.
Devemos oferecer ambiente seguro para a criança extravasar
Quando silenciamos os choros de vitória, quando censuramos os gritos da alegria — estamos insidiosamente ensinando o medo. Em Klein, o brincar é simbólico: a excitação, a inquietude, as birras — são partes fundamentais do processo de elaboração da realidade interna. Sem esses momentos, a criança deixa de explorar limites, desiste do “não” e cresce sem a fibra emocional necessária para fundamentar seus vínculos.
Os seres humanos vêm ao mundo com uma necessidade pulsional: não se trata apenas de barulho, mas de expressão da vida em formação. Barbarizando essa expressão, tornamo-nos agentes de opressão, e uma criança que aprende a reprimir o próprio impulso pode florescer — mas espremida, diminuta, vazia de si mesma, marcada por baixa autoestima e por uma incapacidade estrutural de emoção.
Ensine que há tempo para cada ato, reconhecendo as diferentes pulsões
É preciso nomear os momentos para a criança — e ao fazê-lo, colocá-la ao nosso nível, empatizá-la: “Agora é tempo de brincar”; “Agora é a hora do silêncio”; “Agora é hora de gargalhar”; “Agora, de repousar”. Peça que ela repita esse rito verbal — permitindo que ela internalize a transição psíquica do ato.
Na escuta relacional, as birras — essas explosões de afeto bruto, necessidade líquida — não precisam ser punidas. Podem ser reconhecidas como alívio do excesso emocional, como descarga psíquica necessária à regulação interna. Ao mesmo tempo, acolhê-las é sustentar um espaço de contenção segura.
A mensagem da birra
A birra não é irracional: é uma comunicação do Eu infantil que ainda não dispõe de símbolos para expressar limite, exigência, frustração. Se a criança chora, grita, resiste, é porque experimenta um mundo e dela mesma — e quer metabolizar essas pulsões. Isso é saúde emocional, não patologia .
- A birra reduz tensões, equilibra o aparato emocional e pode, inclusive, favorecer o sono.
- Ensiná-la a tolerar o “não” é educar para a vida — não para o silêncio.
- A mesada, a partir dos 4 anos, traz economização pulsional, mediação simbólica do desejo, noção de valor e de responsabilidade
Conclusão
A infância, em sua potência e fragilidade, se constrói a partir da coragem de sentir, de explorar. Nossa função não é domesticar essas forças, mas sustentá-las e amplificá-las — para que a criança encontre o próprio eu, infiltre-se no mundo e desenvolva os vínculos que habitarão sua existência. É nesse espaço que nasce a saúde emocional, a inteligência relacional e a possibilidade da esperança.
Texto de Clara Dawn, escritora, neuropsicopedagoga e psicanalista, especialista em prevenção à drogadição, aos transtornos mentais e ao suicídio na infância e na adolescência. Clara Dawn é fundadora do Portal Raízes e presidente do IPAM – Instituto de Pesquisas Arthur Miranda em prevenção ao suicídio. Capa: Benício Ávila, foto arquivo pessoal autorizada pela mãe Annalydia M. de Ávila. Proibida a reprodução sem autorização.