“Quando eu abri um clínica pediátrica, em Bayview-Hunters Point, que é um dos bairros mais desfavorecidos de São Francisco, muitas crianças foram encaminhadas para mim por professores, diretores, conselheiros escolares com o diagnóstico de TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade). E não foram poucas. Foram muitas.

Diante disso eu passei a me perguntar o que poderia estar desencadeando TDAH e por que muitas dessas crianças apresentavam problemas de saúde como asma e eczema, você sabe, erupções cutâneas, mas que também tinham histórias graves de adversidades: violência na comunidade, violência em casa, pais que são doentes mentais e/ou dependentes dependentes químicos, ou encarcerados.

O que observei, ao perceber esse padrão, foi que os meus pacientes que apresentavam os piores sintomas, as piores comorbidades, eram também os que apresentavam os piores históricos de adversidades. Foi então aí que meu colega, o doutor Whitney Clarke me perguntou: ‘você viu isso?‘ –  Ele segurava nas mãos um trabalho de pesquisa chamado Estudo de Experiências Adversas na Infância. E foi como se eu tivesse sido atingida por um raio. Porque o que o estudo mostrava, era como à exposição na infância, à adversidades (traumas) em si, é um fator de risco para graves problemas de saúde física, mental, psicológica e socioculturais, a curto e longo prazo.

Aquele dia mudou a minha prática clínica e, em última análise, minha carreira. O Estudo de Experiências Adversas na Infância foi realizado pelo doutor Vince Felitti e pelo doutor Bob Anda. Eles perguntaram a 17.500 adultos sobre o seu histórico de exposição, ao que chamaram de Experiências Adversas na Infância (EAI). Isso inclui abuso físico, emocional ou sexual, negligência física ou emocional, doença mental dos pais, dependência de substâncias, encarceramento, separação ou divórcio dos pais ou violência doméstica. Para cada sim, o entrevistado ganharia um x em sua pontuação de pessoa que passou por Experiências Adversas na Infância.

Infelizmente Experiências Adversas na Infância são comuns

O que eles descobriram foi impressionante. Duas coisas: As pessoas com Experiências Adversas na Infância são incrivelmente comuns. Há uma relação pessoas com Experiências Adversas na Infância e a qualidade integral de sua saúde. Quanto maior foi a pontuação de EAI, piores foram os resultados de saúde. É exatamente aqui que entra a ciência.

Porque agora entendemos, melhor do que nunca, como a exposição a traumas na infância, pode afetar o desenvolvimento do cérebro e do corpo das crianças. Afeta áreas como o centro de prazer e recompensa do cérebro, que está implicado na dependência de substâncias; inibe o córtex pré-frontal, que é necessário para o controle dos impulsos que é uma área crítica para a aprendizagem. E nas ressonâncias magnéticas, podemos ver, nessas pessoas, diferenças mensuráveis ​​em sua amígdala cerebral, que é o centro de resposta ao medo.

Portanto, existem razões neurológicas reais pelas quais as pessoas expostas à altas doses de traumas, têm maior probabilidade de se envolver em comportamentos de alto risco à sua saúde. E isso é importante saber. Mas acontece que mesmo que você não se envolva em nenhum comportamento de alto risco, você ainda terá maior probabilidade de desenvolver doenças cardíacas ou câncer. A razão para isso tem a ver com o sistema de resposta ao estresse do cérebro e do corpo que governa nossa resposta de lutar ou fugir.

Como o trauma se instala no cérebro

Bem, imagine que você está andando na floresta e vê um urso. Imediatamente, o hipotálamo envia um sinal para a hipófise, que envia um sinal para a glândula adrenal que diz: libere os hormônios do estresse, adrenalina, cortisol. E então seu coração começa a bater forte. Suas pupilas dilatam. Suas vias aéreas se abrem. E você está pronto para lutar contra aquele urso ou para fugir dele. E isso pode acontecer se você estiver em uma floresta e nela houver um urso.

Mas o problema do trauma, é que o urso chega em casa todos os dias e este sistema cerebral é ativado continuamente. As crianças são especialmente sensíveis a esta ativação repetida do stress porque os seus cérebros e corpos estão apenas em desenvolvimento. Altas doses de adversidade não afetam apenas a estrutura e o funcionamento do cérebro. Afetam o desenvolvimento do sistema imunológico, o desenvolvimento dos sistemas hormonais e até mesmo a forma como o nosso DNA é lido e transcrito.

Como o trauma da infância pode se manifesta na vida adulta

Algumas crianças apresentam sintomas comportamentais característicos de quem vivencia traumas constantes e, quando adolescentes ou adultas, são mais propensas a sofrerem de depressão, tentar suicídio, ter problemas no local de trabalho ou terem práticas autodestrutivas como o uso de álcool e/ou drogas, ou serem encarceradas. Mas algumas crianças não apresentam quaisquer sintomas comportamentais. Algumas crianças ficam doentes o tempo todo – erupções cutâneas, asma ou doenças autoimunes – certo? E então é mais provável que essas crianças se tornem adultos também doentes. Doenças cardíacas, artrite, cancro, acidentes vasculares cerebrais, doenças pulmonares obstrutivas crónicas e Alzheimer.

É possível reverter os efeitos do trauma na infância?

A boa notícia é que sim, agora que sabemos que o seu ambiente tem um efeito tão profundo na sua biologia, podemos fazer é a detecção precoce, rastrear e curar os impactos das Experiências Adversas na Infância e do estresse tóxico, usando as melhores práticas, incluindo visitas domiciliares, coordenação de cuidados, cuidados de saúde mental, nutrição, intervenções holísticas e, sim, medicação quando necessário. Mas também educamos os pais sobre o impacto das EAI e do estresse tóxico, da mesma forma que você faria para cobrir tomadas elétricas ou envenenamento por chumbo.

Na nossa prática eu tenho visto que funciona. Literalmente, na semana passada, tive uma consulta de acompanhamento com uma paciente que era uma menina que passou por 7 das 10 experiências adversas na infância. E esta criança tinha parado de crescer. Ela teve um diagnóstico de falha no crescimento. Então fizemos uma intervenção chamada psicoterapia mãe-filha. Mas grande parte disso consistia apenas em educar a mãe sobre como a exposição da criança às adversidades estava afetando sua saúde. E hoje a menina voltou a crescer. Esta família está indo muito bem. Podemos reverter os efeitos dos hormônios do estresse tóxico se os detectarmos cedo o suficiente”.

(Se você é adulto e ainda não se libertou das angústias e efeitos dos traumas sofridos na infância, procure ajuda profissional. Pois é possível ter uma vida qualificada apesar dos traumas oriundos de um ambiente familiar abusivo e traumático. Lembre-se, você não tem culpa de ter nascido num ambiente familiar adoecido, mas você pode se cuidar para que de você surja um ambiente familiar saudável).

Transcrição de trechos de uma palestra de Nadine Burke Harris, pediatra e fundadora do Centro de Bem-Estar Infantil em São Francisco, na Califórnia. Confira a palestra na íntegra:






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