O que acontece com o corpo quando a alma se cala? Em uma cultura que frequentemente valoriza a resiliência forçada e a negação da dor, muitos aprendem a confundir a bondade com a anulação de si. Ser “bom” passa a significar não incomodar, não sentir raiva, não impor limites. Mas o custo dessa bondade silenciada é pago em uma moeda biológica, e o Dr. Gabor Maté em seu livro “Quando o Corpo Diz Não”, nos convida a refletir sobre essa dívida.

A premissa central de Maté não é apenas psicológica, mas profundamente existencial e social. Ele argumenta que o trauma não é apenas um evento passado, mas a desconexão que resulta dele. Em um ambiente social tóxico, onde a autenticidade é sacrificada em nome da aceitação, o indivíduo aprende a reprimir suas necessidades emocionais mais profundas. Essa repressão não é um ato puramente mental; ela é registrada e vivida pelo corpo. A mente e o corpo não são entidades separadas, mas um sistema unificado que reage ao estresse crônico da negação emocional.

O que Maté nos mostra é que o estresse não é apenas uma sensação de pressa ou sobrecarga, mas um estado fisiológico de alerta constante. Quando negamos nossa raiva, nossa tristeza ou nossa necessidade de apoio, o sistema nervoso simpático, responsável pela resposta de luta ou fuga, permanece ativado. O corpo é inundado por hormônios do estresse, como o cortisol, que, em excesso, minam o sistema imunológico e contribuem para o desenvolvimento de doenças crônicas. O corpo, em sua sabedoria silenciosa, diz “não” quando a pessoa não consegue dizê-lo.

É neste ponto que a bondade genuína emerge como uma força reguladora. A bondade, o cuidado e a compaixão, quando praticados de forma autêntica e recíproca, são experiências de vínculo e segurança. Essas experiências ativam o sistema nervoso parassimpático, o modo de “descanso e digestão”, que é o caminho biológico para a cura.

A ciência contribui com essa visão ao identificar a liberação de substâncias neuroquímicas que modulam nosso estado interno. A oxitocina, frequentemente chamada de hormônio do vínculo, é liberada em atos de cuidado e conexão, agindo como um poderoso agente ansiolítico e redutor da pressão arterial. As endorfinas, os analgésicos naturais do corpo, são ativadas em momentos de altruísmo, proporcionando uma sensação de bem-estar que recompensa o ato de dar. A bondade, portanto, não é um luxo moral, mas uma necessidade biológica que repara o dano causado pelo isolamento e pelo estresse.

No cotidiano, isso se traduz em uma profunda conexão entre a qualidade de nossos relacionamentos e a saúde de nossa mente e corpo. A saúde mental não é apenas a ausência de sintomas, mas a capacidade de sentir e expressar emoções de forma segura, de pertencer e de ser visto. Quando estendemos a mão a alguém, ou quando permitimos que alguém nos estenda a mão, estamos ativando um circuito de segurança que acalma o sistema nervoso. A compaixão, nesse sentido, é um ato de autorregulação que se manifesta no mundo.

A bondade que Maté nos convida a praticar é aquela que nasce da consciência, e não do medo. É a bondade que inclui a si mesmo, que reconhece a própria dor e a dor do outro sem julgamento. Não se trata de uma promessa de cura mágica, mas de um convite à sensibilidade radical: a de que somos seres sociais cuja biologia é moldada pela qualidade de nossas conexões. Ao escolher a compaixão, escolhemos um caminho de menor estresse fisiológico e maior integridade psíquica. A verdadeira força não reside na dureza, mas na capacidade de ser gentil, pois é na gentileza que o corpo encontra permissão para descansar e, finalmente, curar.

Fontes pesquisadas

  1. Maté, G. (2022). The Myth of Normal: Trauma, Illness, and Healing in a Toxic Culture. Avery.
  2. Maté, G. (2003). When the Body Says No: The Cost of Hidden Stress. John Wiley & Sons.
  3. Maté, G. (2010). In the Realm of Hungry Ghosts: Close Encounters with Addiction. Vintage Canada.
  4. Fryburg, D. A. (2021). Kindness as a Stress Reduction–Health Promotion Intervention. Frontiers in Psychology,
  5. Barraza, J. A., & Zak, P. J. (2009). Empathy toward strangers triggers oxytocin release and subsequent generosity. Annals of the New York Academy of Sciences
  6. Zak, P. J., Stanton, A. A., & Ahmadi, S. (2007). Oxytocin increases generosity in humans
  7. Kucerova, B., et al. (2023). From Oxytocin to Compassion: The Saliency of Distress.
  8. Post, S. G. (2005). Altruism, happiness, and health: it’s good to be good. International Journal of Behavioral Medicine
  9. Rauchbauer, B., et al. (2023). Only empathy-related traits, not being mimicked or endorphin release, influence social closeness and prosocial behavior
  10. The Science of Kindness. Random Acts of Kindness Foundation. (Acessado em Dezembro de 2025).
  11. Grewen, K. M., et al. (2005). More frequent partner hugs and higher oxytocin levels are linked to lower blood pressure and heart rate in premenopausal women. Biological Psychology
  12. Porges, S. W. (2011). The Polyvagal Theory: Neurophysiological Foundations of Emotions, Attachment, Communication, and Self-regulation. W. W. Norton & Company.





As publicações do Portal Raízes são selecionadas com base no conhecimento empírico social e cientifico, e nos traços definidores da cultura e do comportamento psicossocial dos diferentes povos do mundo, especialmente os de língua portuguesa. Nossa missão é, acima de tudo, despertar o interesse e a reflexão sobre a fenomenologia social humana, bem como os seus conflitos interiores e exteriores. A marca Raízes Jornalismo Cultural foi fundada em maio de 2008 pelo jornalista Doracino Naves (17/01/1949 * 27/02/2017) e a romancista Clara Dawn.