A obra poética de Adélia Prado é prova de que a poesia não precisa nascer somente do solo duro do eixo Rio-São Paulo. Como poucas, ela sabe resgatar para o seu leitor toda trama cultural e social do piccolo mondo das cidades do interior brasi­leiro. Pequenas histórias familiares, dra­mas do dia-a-dia, tudo isso filtrado pelo seu olhar arguto, resulta numa poesia refinada e bela. É aquela fa­mosa história de que ao tratar de sua aldeia, o poeta está sendo universal. Mo­ran­do em Divinópolis, Minas Gerais, onde nasceu em 1935, Adélia Prado é uma das mais importantes poetas brasileiras. E não des­cuida do verso, nem tampouco da prosa. Adélia Prado colocou a sua cidade, no oeste de Minas, dentro do mapa da poesia brasi­leira. Sua verve está entranhada na experiência e resulta do garimpo diário das palavras. Confira:

Alvará de demolição

O que precisa nascer
tem sua raiz em chão de casa velha.
À sua necessidade o piso cede,
estalam rachaduras nas paredes
os caixões de janela se desprendem.
o que precisa nascer aparece no sonho buscando frinchas no teto,
réstias de luz e ar.
Sei muito bem do que este sonho fala
e a quem pode me dar
peço coragem.
Poema do livro A duração do Dia, Editora Record, 2ª Edição, 2011, página 37.

 
Mote da Viúva

Sol com chuva
casamento da viúva
que de maneira discreta
oferece docinhos.
O noivo não disfarça a pressa
de ficar a sós com a experiente mulher.
É bom ter calma, até que o último a sair
bata de novo à porta
querendo seu guarda-chuva.
Como de um satélite
que a olhos nus navega devagar,
vê-se a terra lá embaixo,
rios, campinas, cidadezinhas, torres,
entra dia, sai noite,
uma volta completa.
Lambendo o mel da lua a viúva
ensina o homem a raiar.
(Poema do livro A duração do Dia, Editora Record, 2ª Edição, 2011, página 49).

Trégua
Hoje estou velha como quero ficar.
Sem nenhuma estridência.
Dei os desejos todos por memória
e rasa xícara de chá.
(Verso do livro Bagagem, Editora Record, 2010, 29ª edição, página 29).

Para comer depois

Na minha cidade, nos domingos de tarde,
as pessoas se põem na sombra com faca e laranjas.
Tomam a fresca e riem do rapaz da bicicleta,
a campainha desatada, o aro enfeitado de laranjas:
‘Eh bobagem!’
Daqui a muito progresso tecno-ilógico,
quando for impossível detectar o domingo
pelo sumo das laranjas no ar  e bicicletas,
em meu país de memória e sentimento,
basta fechar os olhos:
É domingo, é domingo, é domingo.
(Do livro Bagagem, Editora Record, 2010, 29ª edição, página 43).






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