Eugénio de Andrade nasceu em Póvoa de Atalaia (19/ 01/1923), uma aldeia da Beira Baixa onde passou a infância. Sagrou-se à poesia como uma espécie de monge que vê no poema a via da redenção. Afabilidade e rudeza, ascetismo e hedonismo nele coabitam sem qualquer espécie de tensão. O encanto desta poesia capaz de suscitar uma emoção tão viva provém em grande medida da extraordinária harmonia (“aliança primogénita entre a palavra e a música”) encontrada no corpo do poema. Torna real o símile da corporalidade, tornando a língua mais maleável.  Morreu em 13 de junho de 2005, Porto, Portugal.

“Vou fazer-te uma confidência, talvez tenha já começado a envelhecer e o desejo, esse cão, ladra-me agora menos à porta. Nunca precisei de frequentar curandeiros da alma para saber como são vastos os campos do delírio. Agora vou sentar-me no jardim, estou cansado, Setembro foi mês de venenosas claridades, mas esta noite, para minha alegria, a terra vai arder comigo. Até ao fim”.  Eugénio de Andrade, em “Memória doutro Rio”. 1978.

7 poemas escolhidos de Eugénio de Andrade

1. A figueira
Este poema começa no verão,
os ramos da figueira a rasar
a terra convidam a estender-me
à sua sombra. Nela
me refugiava como num rio.
A mãe ralhava: A sombra
da figueira é maligna, dizia.
Eu não acreditava, bem sabia
como cintilavam maduros e abertos
seus frutos aos dentes matinais.
Ali esperei por essas coisas
reservadas aos sonhos. Uma flauta
longínqua tocava numa écloga
apenas lida. A poesia roçava-
-me o corpo desperto até ao osso,
procurava-me com tal evidência
que eu sofria por não poder dar-lhe
figura: pernas, braços, olhos, boca.
Mas naquele céu verde de Agosto
apenas me roçava, e partia.
– Eugénio de Andrade, em “Poesia”. [Posfácio de Arnaldo Saraiva]. 2ª ed., revista e acrescentada Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2005, p. 559.

2. A ilha
Tanta palavra para chegar a ti, 
tanta palavra, 
sem nenhuma alcançar 
entre as ruínas 
do delírio a ilha, 
sempre mudando 
de forma, de lugar, estremecida 
chama, preguiçosa 
vaga fugidia 
do mar de Ulisses cor de vinho. 
– Eugénio de Andrade, em “O ofício de paciência”. 1994.

3. A música

Alámos
música
de matutina cal.
Doces vogais
de sombra e água
num verão de fulvos
lentos animais.
Calhandra matinal
no ar
feliz de junho.
Acidulada
música de cardos.
Música do fogo
em redor dos lábios.
Desatada
à roda da cintura.
Entre as pernas,
junta.
Música
das primeiras chuvas
sobre o feno.
Só aroma.
Abelha de água.
Regaço
onde o lume breve
de uma romã brilha.
Música, levai-me:
Onde estão as barcas?
Onde são as ilhas?
– Eugénio de Andrade, em “Obscuro Domínio”, 1972.

4. A pedra

A pedra. Sou-lhe fiel pelo aroma. 
Vim de longe para tocar o fogo 
da sua geometria sem fronteiras. 
Pedra viva. Ou melhor: acariciada. 
Pedra profunda, chamada pelo sol, 
num voo sem fim, sempre parada.
– Eugénio de Andrade, em “Pequeno formato”. 1997.

5. A pequena pátria
A pequena pátria; a do pão; 
a da água; 
a da ternura, tanta vez 
envergonhada; 
a de nenhum orgulho nem humildade; 
a que não cercava de muros 
o jardim nem roubava 
aos olhos o desajeitado voo 
das cegonhas; a do cheiro quente 
e acidulado da urina 
dos cavalos; a dos amieiros 
à sombra onde aprendi 
que o sexo se compartilhava; 
a pequena pátria da alma e do estrume 
suculento morno mole; 
a da flor múltipla e tão amada 
do girassol. 
– Eugénio de Andrade, em “Os lugares do lume”. 1998.

6. Adágio

O Outono é isto – 
apodrecer de um fruto 
entre folhas esquecido. 
Água escorrendo, 
quem sabe donde, 
ocasional e fria 
e sem sentido.
– Eugénio de Andrade, em “Primeiros poemas”. 1977.

7. Antes de saber

Até onde os dedos tocam o quente 
do barro a mão sabe 
antes de saber. 
É um saber mais vivo, um saber 
de ave: águia cegonha falcão, 
animais quase no fim 
como o lume destes dias. 
Testemunhar a favor do lince 
é nossa obrigação. 
Por ser azul.
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