O ódio que nasce na internet não pode ser tratado como brincadeira. A violência contra mulheres e meninas mudou de ambiente, velocidade e método. Hoje, grande parte dela começa no silêncio das telas, alimentada por vídeos curtos, comunidades on-line e influenciadores que transformam ressentimento em identidade e misoginia em entretenimento.

Esse ecossistema digital, conhecido como machosfera, está longe de ser inofensivo. Pesquisas científicas, relatórios internacionais e análises de políticas públicas mostram que o discurso violento que se normaliza na internet frequentemente atravessa a tela e evolui para agressões reais.

A ONU Mulheres tem alertado para esse fenômeno. Num post recentemente publicado pela instituição sintetiza o que diversos estudos já vêm apontando: o ódio digital é uma porta aberta para a violência física. Não há desculpa, atenuante ou justificativa para esse tipo de prática. E, como sociedade, precisamos compreender o problema para enfrentá-lo com consistência.

O que é a machosfera

A machosfera reúne grupos, fóruns e influenciadores que se apresentam como defensores de uma masculinidade supostamente tradicional, mas que na prática promovem narrativas de vitimização masculina e hostilidade às mulheres. Ela inclui subculturas como incels e redpills, que utilizam vídeos, memes, linguagem técnica distorcida e estratégias de comunicação viral para disseminar misoginia em grande escala.

Esses espaços funcionam como comunidades de acolhimento para homens jovens que se sentem frustrados, inseguros ou desamparados. O problema é que o acolhimento vem acompanhado de uma pedagogia do ódio. A ideia de que os homens seriam as verdadeiras vítimas da sociedade atual é reafirmada diariamente, consolidando um cenário onde ressentimento e violência se tornam parte da identidade do grupo.

Como a misoginia virou entretenimento

A naturalização da violência contra mulheres acontece por três mecanismos muito claros, evidenciados por pesquisas recentes:

  1. Repetição massiva de conteúdos curtos que reduzem o pensamento crítico.
  2. Uso de humor para disfarçar agressões e responsabilizar a vítima por “não saber brincar”.
  3. Monetização de discursos polarizados, incentivada pelo próprio algoritmo das plataformas.

Esse conjunto cria um ambiente em que a misoginia deixa de ser percebida como violência e passa a ser vista como opinião, verdade ou até como piada. Quando isso se torna hábito cultural, a violência simbólica se transforma em ação.

O caminho que leva do virtual ao físico

Relatórios internacionais mostram que mulheres que sofrem ataques on-line têm risco significativamente maior de sofrer agressões offline. O assédio digital costuma vir acompanhado de perseguição, vazamento de dados pessoais e discursos de desumanização que incentivam comportamentos violentos.

A ONU Mulheres reforça que a radicalização masculina na internet está diretamente conectada à escalada de crimes contra mulheres, incluindo feminicídios. O ódio que começa como meme pode evoluir para uma agressão real. Essa conexão já é documentada e não pode ser ignorada.

A relação com jovens e a formação de identidade

Levantamentos recentes apontam que uma proporção significativa de homens jovens consome rotineiramente conteúdos de influenciadores da machosfera. Esse consumo não significa que todos se tornarão violentos, mas indica que muitos estão sendo expostos a discursos homogêneos e nocivos sobre masculinidade.

Do ponto de vista psicanalítico, esses discursos funcionam como um supereu punitivo que cobra dos jovens uma identidade impossível de cumprir. Quando o jovem não corresponde ao ideal, a culpa é projetada no outro. Em grande parte das vezes, esse outro é uma mulher.

O que precisamos fazer

Enfrentar a violência digital requer uma articulação entre políticas públicas, educação emocional e responsabilização das plataformas. Estudos apontam as seguintes medidas como essenciais:

  1. Exigir transparência algorítmica e punição para conteúdos que incentivem ódio e violência.
  2. Implementar programas de educação digital que ensinem jovens a reconhecer manipulação, desinformação e discurso de ódio.
  3. Criar redes de proteção para vítimas de ataques on-line, conectando escolas, instituições públicas e serviços de saúde.
  4.  Incentivar o desenvolvimento de masculinidades saudáveis, capazes de lidar com frustração, afetos e limites.

A violência digital não é apenas um problema tecnológico. Ela é psicológica, política e social. É preciso enfrentá-la como um fenômeno que molda comportamentos e relações de gênero.

Conclusão

A machosfera não é um fenômeno isolado e tampouco restrito ao ambiente virtual. Trata-se de uma rede de discursos e práticas que formam identidades coletivas baseadas na misoginia e que, comprovadamente, podem favorecer agressões físicas. A mensagem da ONU Mulheres é clara. Nada justifica a violência digital. E, em um mundo onde a vida acontece também na internet, combater o ódio nas telas é proteger a vida real.

Foto de capa: Sima Sami Bahous, diplomata e defensora dos direitos das mulheres, atualmente servindo como Diretora Executiva da ONU Mulheres (United Nations Entity for Gender Equality and the Empowerment of Women). Ela assumiu o cargo em 30 de setembro de 2021, nomeada pelo Secretário-Geral das Nações Unidas após mais de 35 anos de atuação em liderança internacional e esforços pelo empoderamento feminino e igualdade de gênero

Referências

  • ONU Mulheres. What is the manosphere and why should we care. Relatório de 2025.
  • AP News. Violência contra mulheres jornalistas e ativistas ligada ao abuso digital. Reportagem baseada em dados de 2025.
  • The Guardian. Online abuse of women and escalation to real-world violence. Análise jornalística baseada em estudos internacionais, 2025.
  • Governo do Brasil. Estratégias discursivas e monetização da misoginia no YouTube. Relatório técnico, 2024.
  • Womankind Worldwide. TFGBV Policy Brief sobre violência de gênero facilitada por tecnologia, 2024.
  • Tese UFSC. Do Telegram ao Instagram: circulação de conteúdo multimodal na machosfera brasileira. Repositório acadêmico.





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