Durante séculos, a mulher foi interpretada. Interpretada pela religião, pela ciência, pela literatura, pela política e, sobretudo, por uma cultura que fez da submissão uma virtude e da obediência uma forma de amor. Mas toda interpretação é também uma forma de poder.

Como lembra Judith Butler, no seu livro: Quem tem medo do gênero?, o modo como nomeamos, descrevemos e enquadramos os corpos define quem tem o direito de existir e quem será relegado ao silêncio. Segundo ela: não há nada mais subversivo e, ao mesmo tempo, político, do que a mulher que se recusa a ser interpretada por narrativas impostas.

Recusar ser interpretada, portanto, é mais do que um gesto individual: é um ato político de desobediência simbólica. É o momento em que a mulher devolve o olhar e diz “não” às narrativas que tentam traduzi-la. Seja em nome da natureza, da moral ou da tradição. Butler afirma que a disputa em torno do gênero não é apenas sobre identidade, mas sobre quem pode ser reconhecido como humano, e quem continua sendo objeto de controle discursivo. Quando uma mulher se recusa a caber nas palavras que a definem, ela subverte a própria estrutura que sustenta o poder.

Historicamente, o corpo feminino foi usado como metáfora da fragilidade e, ao mesmo tempo, como território de controle. Da caça às bruxas à medicalização do parto, do voto negado ao silenciamento doméstico, a mulher foi descrita como se fosse uma categoria natural e estável: algo “dado” e não “construído”. Butler desmonta essa ilusão: o gênero não é uma essência, mas um ato repetido sob coerção social, e toda vez que uma mulher se nega a repetir o roteiro esperado, ela desmonta o mito da “feminilidade verdadeira”.

Culturalmente, vivemos um tempo em que o discurso conservador tenta domesticar o debate de gênero, travestindo o medo de perder o controle sobre os corpos de “defesa da família”. É o pânico moral que Butler identifica: o medo do gênero é, na verdade, o medo da liberdade; o medo de que as pessoas vivam fora dos papéis que garantem o conforto das hierarquias.

Mas o que está em jogo não é destruir a família, e sim libertar o amor das amarras da norma. Nenhum laço humano precisa de submissão para existir; precisa, sim, de reconhecimento mútuo.

Do ponto de vista social, essa recusa de interpretação é o que abre espaço para novas formas de subjetividade. Quando as mulheres se tornam autoras de suas próprias narrativas, elas transformam o campo simbólico: redefinem o que é cuidado, poder, maternidade, trabalho e desejo.

Recusar-se a ser interpretada é também um ato de imaginação. Imaginar-se fora daquilo que o discurso dominante permite ser. E imaginar é o primeiro passo da transformação política.

Por isso, não há nada mais subversivo e, ao mesmo tempo, político, do que a mulher que se recusa a ser interpretada por narrativas impostas.

Porque ao desobedecer à linguagem que a define, ela não apenas conquista voz: ela cria uma nova gramática para a existência.






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