“É necessário nos dedicarmos ao essencial”, escreveu o mestre Rubem Alves em seu livro: “Variações Sobre o Prazer“. E prossegue: “Então devemos abandonar o amor? Não. Mas é preciso escolher. Porque o tempo foge. Não há tempo para tudo. Não poderei escutar todas as músicas que desejo, não poderei ler todos os livros que desejo, não poderei abraçar todas as pessoas que desejo. É necessário aprender a arte de abrir mão para que possamos nos dedicar ao que realmente importa”.

As palavras parecem simples, mas carregam uma realidade que não costumamos nos dizer. É como se deslocassem o coração para um espelho onde ele não pode mentir. O tempo realmente foge. A vida realmente não cabe toda no corpo. E a ideia de que precisamos escolher não é uma punição, mas um modo de habitar o mundo sem nos despedaçar.

A psicanálise sempre nos lembra que desejar é viver em falta, e que viver em falta não é falhar. É condição humana. Quem tenta abraçar tudo abraça o ar. Quem tenta ler o mundo inteiro se perde de si mesmo no labirinto do excesso. O excesso, aliás, é uma forma sofisticada de defesa. Enchemos a vida para não sentir o vazio. Corremos para não escutar o silêncio. Multiplicamos compromissos para não encarar que estamos exaustos.

Mas então surgem essas frases que nos colocam de volta no eixo da existência e nos perguntam, com ternura e um pouco de malícia: o que exatamente você está escolhendo quando não escolhe nada?

O gesto de abrir mão pode ser o início de uma vida mais honesta. Abrimos mão de ruídos para ouvir algo nosso. Abrimos mão de expectativas para preservar vínculos que importam. Abrimos mão de metas impossíveis para recuperar a alegria pequena, aquela que mora no cotidiano, na leitura lenta de um livro, no abraço que não se dá por obrigação, mas por desejo.

A verdade é que ninguém teme as escolhas. O que tememos é a perda. Mas escolher não é perder. Escolher é cultivar. Quem cuida de muitas sementes raramente colhe alguma. Quem cuida de poucas colhe jardins.

Na perspectiva existencial, escolher é assumir a autoria da própria história. E assumir a autoria é romper com a fantasia de que viver exige mil braços. Não exige. Exige presença. Exige coragem para dizer sim ao que ainda pulsa e não ao que se tornou peso. Exige maturidade para entender que o essencial não grita. Sussurra.

A vida não é uma feira onde precisamos provar de tudo. É um quintal interno onde apenas algumas coisas florescem quando damos atenção. E talvez seja isso que o excerto nos oferece: uma ética da delicadeza. Um convite a diminuir o passo, tocar menos objetos e tocar mais profundamente aquilo que vale guardar.

Abrir mão é, no fundo, uma forma de amor. Um amor dirigido ao que realmente sustenta a nossa existência.

NOTA: O excerto citado na introdução deste artigo é amplamente atribuído a Rubem Alves e circula de forma recorrente em versões digitais de seu livro: “Variações sobre o prazer”. A autoria é reconhecida de maneira consistente em publicações e compilações do autor, embora a página da edição impressa não esteja disponível em fac-símile público.






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