A maternidade traz mudanças nas mais diferentes esferas da vida da mulher. Do corpo ao planejamento financeiro, tudo passa por uma revolução. E o círculo social também se transforma. Com a maternidade, vem a construção social de que a mãe precisa viver somente para o filho, deixando de lado suas amizades, diversões e até mesmo a vida sexual.

A maternidade é, para muitas mulheres, uma experiência transformadora e significativa. Entretanto, ela também pode ser um espaço de anulação da mulher enquanto ser social, pensante e desejante. A construção social do papel materno frequentemente impõe às mães uma carga que ultrapassa o cuidado com os filhos, exigindo delas um apagamento de suas próprias vontades, identidades e aspirações. O problema é que, muitas vezes, não se reflete sobre isso antes de decidir ter filhos. Em outros casos, a pressão social é um empurrão para um caminho que já não parecia favorável para si.

Em Nova Gales do Sul, na Austrália, uma mulher pediu às autoridades para que fossem retiradas as suas duas filhas, justificando que já não as ama. Tammy declarou: “Já não existe amor. Não as amo. Elas são desagradáveis.” De acordo com a mesma fonte, a mulher filmou o comportamento das filhas e entregou as imagens às autoridades. “Levem-nas, levem-nas. A minha paciência chegou ao fim”, acrescentou. O caso corre em segredo de justiça. Diante deste episódio, questionamos: é possível se arrepender da decisão de ser mãe?

A conflitante realidade das mães arrependidas de terem filhos

Você prefere morrer a admitir em público, sem disfarces, que a maternidade não é o ápice da sua autorrealização; que ter filhos se revelou algo muito sacrificante? Se esse é o seu caso, não se veja como a única “maçã podre” no cesto. Esse sentimento, um tabu absoluto, é compartilhado por muitas mulheres que só se atrevem a mencioná-lo em voz baixa e com poucos interlocutores.

Orna Donath, antropóloga, doutora em sociologia e pesquisadora na Ben-Gurion University of Negev, em Israel, investigou essa polêmica realidade. Para isso, a especialista entrevistou 23 mulheres que se diziam arrependidas de ser mães.

As 23 narradoras frisam que, apesar de odiarem a experiência da maternidade, não deixam de amar profundamente seus filhos. Os depoimentos foram reunidos no ensaio Regretting Motherhood: A Sociopolitical Analysis (Arrependendo-se da Maternidade: Uma Análise Sociopolítica), publicado na revista Signs Journal of Women in Culture and Society (dezembro de 2015), e depois transformado no livro: “Mães Arrependidas – uma outra visão da maternidade”.

No Brasil, as mulheres enfrentam desafios significativos no exercício da maternidade. A desigualdade social, a falta de redes de apoio, e as cobranças culturais para que as mães sejam perfeitas tornam a experiência materna ainda mais complexa. A mãe brasileira muitas vezes é vista como a principal responsável pela formação dos filhos e é constantemente julgada por suas escolhas, sejam elas profissionais, pessoais ou familiares.

Medo da rejeição social

Uma das conclusões do estudo é que existe um sentimento que a sociedade castiga mais duramente do que o desejo de não ser mãe: o arrependimento de ter sido. Foi o que sentiu Stela, mãe de três filhos:

“Eu achava difícil dizer que ter filhos foi um erro. Demorei muito para poder pronunciar essas palavras. Pensava: ‘Ai, se eu disser algo assim, acharão que estou louca.’ Hoje tenho certeza de que, se pudesse voltar atrás, não traria crianças ao mundo”.

Reconhecer que sua vida seria melhor sem filhos não é um drama. Não há volta, mas romper o silêncio ajuda: “Amo meus filhos, mas não deveria tê-los tido.”

O silêncio e a culpa podem levar ao ódio contra as crianças e até mesmo a doenças físicas e psicoemocionais. O ideal de que a mãe deve ser divina e perfeita precisa ser desconstruído. Esse pensamento impõe um peso injusto às mulheres, que passam a viver em função de um padrão inalcançável. Reconhecer que a mãe é um ser humano falível, com suas limitações e necessidades, é essencial para mudar a narrativa em torno da maternidade.

Arrependimento materno e a mãe suficientemente boa

O arrependimento em relação à maternidade ainda é um tabu cercado de estigmas. Mulheres que sentem esse arrependimento são muitas vezes vistas como monstros ou como ingratas. É fundamental mudar essa percepção e oferecer espaço para que essas mães possam expressar seus sentimentos sem medo de julgamento. Arrepender-se da maternidade não significa que essas mulheres não amem seus filhos, mas sim que elas enfrentam desafios emocionais, sociais e psicológicos que precisam ser acolhidos.

No livro Os Filhos da Mãe, Marcia Neder oferece uma análise profunda sobre a maternidade sem culpa. A autora desconstrói mitos e apresenta ferramentas para que as mulheres possam exercer a maternidade de forma mais livre e consciente, sem carregar o peso das cobranças externas. Neder ressalta a importância de reconhecer os limites e as falhas como parte natural da experiência materna.

O conceito de “mãe suficientemente boa”, introduzido por Donald Winnicott, é uma contribuição valiosa para repensarmos a maternidade. Segundo Winnicott, a mãe não precisa ser perfeita; basta que seja suficientemente boa para atender às necessidades essenciais de seus filhos. Isso alivia a pressão sobre as mães, permitindo que elas se conectem com seus filhos de maneira mais autêntica e menos carregada de culpa.

Pais abandonam os filhos todos os dias

Embora também existam homens que se arrependem da paternidade, seu calvário não é tão penoso como o das mulheres. “Um homem não é julgado da mesma forma. Geralmente, é entendido e raramente criticado”, afirma Laura García Agustín, psicóloga clínica.

O fator sociocultural que exime o homem de julgamento por se arrepender de ser pai reflete a desigualdade de expectativas impostas aos papéis de gênero. Enquanto a mulher é frequentemente idealizada como uma figura materna incondicional, responsável pelo bem-estar emocional e físico dos filhos, o homem é visto como um provedor cuja função na parentalidade pode ser secundária. Assim, a sociedade tende a tolerar ou ignorar os sentimentos de arrependimento masculino em relação à paternidade, minimizando sua importância ou atribuindo esses sentimentos a questões externas, como pressões financeiras ou falta de preparo. Essa disparidade reforça estereótipos e perpetua uma visão limitada sobre o que significa ser pai e mãe.

E se acontecer comigo?

A maternidade é uma experiência complexa e multifacetada, e tudo bem não ser perfeita. Tudo bem buscar ajuda e tudo bem admitir que, às vezes, ser mãe é mais difícil do que se imaginava. Promover um diálogo aberto sobre a maternidade, livre de julgamentos e idealizações, é essencial para apoiar as mulheres nesse caminho tão desafiador e, ao mesmo tempo, transformador.

Romper o silêncio é essencial, segundo especialistas. Sentimentos não expressos provocam conflitos internos e até sintomas físicos. Laura García Agustín reforça: “Muitas mulheres somatizam essa culpa e acabam adoecendo.”

Por isso, a verbalização é fundamental:

  • Reconheça seus sentimentos;
  • Dê nome às suas emoções;
  • Compartilhe com alguém de confiança;
  • Procure ajuda profissional, se necessário.

Sejamos mais compreensivos e verdadeiros. Precisamos falar sobre nossos sentimentos para encontrar um caminho sem sofrimento, seja na maternidade ou em qualquer decisão de vida.






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