Ganhou força , nos últimos dias ,nas redes e nos noticiários de todo o mundo a decisão histórica do parlamento da Itália: a aprovação por unanimidade da lei que insere o crime de feminicídio como categoria autônoma em seu Código Penal, com pena de prisão perpétua para quem matar uma mulher motivado por discriminação de gênero, ódio ou desejo de controlar seu corpo, sua liberdade ou sua recusa de vínculo.
A lei, apoiada por uma coalizão rara entre centro-direita e centro-esquerda, foi sancionada justamente em 25 de novembro, Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres, gesto simbólico que espera marcar o fim da impunidade.
O assassinato de Giulia Cecchettin, ocorrido em 11 de novembro de 2023, após semanas de sinais explícitos de controle e ameaças por parte do ex-namorado Filippo Turetta, desencadeou na Itália uma das maiores discussões recentes sobre violência de gênero e as raízes estruturais do patriarcado. O país assistiu, atônito, à convergência entre um caso individual e um mal coletivo. Quando Turetta foi condenado à prisão perpétua em primeira instância e abriu mão de recorrer, o processo judicial se encerrou rapidamente, mas a ferida social continuou aberta.
A contundência mais transformadora não veio dos tribunais, mas da coragem da irmã de Giulia, Elena Cecchettin, que recusou a narrativa confortável do agressor como “monstro”. Ao afirmar que ele era “um filho saudável do patriarcado e da cultura do estupro”, ela deslocou o foco da exceção para o sistema, da barbárie individual para o caldo cultural que autoriza a violência contra mulheres como expressão de posse, ciúme e controle. Suas palavras reverberaram como um grito coletivo e desencadearam manifestações em todo o país, incluindo o simbólico “minuto de barulho”, gesto que buscava romper o silêncio histórico que costuma recair sobre vítimas e sobreviventes. Após o caso, as ligações para o número nacional antiviolência, o 1522, aumentaram de forma significativa, revelando que quando alguém nomeia o indizível, muitas outras ganham coragem de pedir ajuda.
Em novembro de 2024, o pai da jovem, Gino Cecchettin, inaugurou a Fondazione Giulia Cecchettin com a proposta de promover mudanças culturais profundas e duradouras. A iniciativa nasceu como um contraponto ético e humano à tragédia, um esforço para transformar luto em ação, dor em responsabilidade social. A cerimônia de abertura, no entanto, foi atravessada por polêmica quando o ministro Giuseppe Valditara classificou o combate ao patriarcado como “ideológico” e associou o aumento da violência sexual à “imigração ilegal”. A resposta de Elena foi imediata e precisa. Ela lembrou que a irmã foi morta por um rapaz italiano, branco e considerado “do bem”, desmontando a tentativa de deslocar a responsabilidade para grupos externos e reafirmando que a violência misógina é produzida no centro da cultura, não em suas margens.
Essa narrativa se tornou um divisor de águas na Itália porque expôs, sem anestesia, aquilo que a psicanálise e os estudos de gênero já apontavam havia décadas: a violência contra mulheres não é um desvio, mas uma herança histórica. Uma herança que só começa a ruir quando alguém, como Elena, nomeia e denuncia o que gerações e gerações têm acobertado.
Na Europa, como em estudos da Itália, os números muitas vezes expressam a face mais brutal da desigualdade de gênero: o feminino como alvo em nome do controle, da posse, do medo da autonomia. A institucionalização de plataformas cartográficas de feminicídios, como o Atlante dei Femminicidi, denuncia uma cultura que apenas agora começa a se permitir ver o horror como problema coletivo, não apenas casos trágicos.
Segundo reportagens recentes, a Itália “se junta a um punhado de nações: incluindo México e Chile, que criminalizam o femicídio com lei específica”. Em diversos países há legislação, ou pelo menos agravantes legais, que tratam homicídios de mulheres motivados por gênero com penas específicas, registros diferenciados, maior severidade, ou tipificações afins (“femicide/femicídio”, “homicídio por violência doméstica”, “homicídio por gênero”, “crime de ódio de gênero”, etc). A própria noção de “feminicídio” já era usada por movimentos, jurisprudências e legislações em várias nações antes da lei italiana
A novidade não é mero ajuste jurídico. É o reconhecimento explícito de que assassinatos de mulheres por serem mulheres não são tragédias isoladas: são expressão de poder desigual, de um sistema cultural que naturaliza a dominação masculina. Para muitos, representa um avanço fundamental. Para outros, ainda insuficiente, pois uma lei não substitui educação, mudanças culturais e prevenção real.
Mas essa lei italiana, por mais severa que soe, não é uma resposta só nacional: insere-se numa urgência global. Ela nos chama a pensar o feminicídio não como falha individual, mas como falha civilizatória.
A violência de gênero jamais se resume a um “caso isolado”. Ela é sintoma de uma estrutura que naturaliza desigualdades, que regula corpos e afetos com base no medo, no controle, na crença de que existir é um privilégio condicional. No Brasil e lá fora, a cada estatística há uma mulher, invisibilizada antes, lembrada apenas no número. E por isso cada dado exige ser recontado, humanizado, repensado.
Inspirar-se nesses modelos é importante para globalizar a denúncia, reconhecer os traços universais da violência de gênero e entender que o Brasil, apesar de seus traços culturais próprios, está imerso nessa mesma estrutura perversa.
Essas iniciativas reforçam a noção de que a violência de gênero não é consequência de exceções individuais, mas expressão de uma lógica estrutural: patriarcado, misoginia, desvalorização da vida feminina, herança psíquica e social de dominação.
No Brasil, onde a violência de gênero também escancara desigualdades históricas, onde o corpo feminino continua sendo campo de disputa simbólica e real, essa notícia italiana não pode ser vista como distante: deve provocar, ressoar, nos instigar a revisar leis, cultura, machismos cotidianos, silêncio coletivo.
Para que o grito não se perca nos corredores das delegacias ou na infinidade de planilhas, vale trazer à luz os dados mais recentes sobre violência contra mulheres no Brasil:
Em 2024 foram registrados 1.450 feminicídios no país, segundo o relatório Ministério das Mulheres, mantendo uma média sombría de cerca de quatro mulheres mortas por dia.
Muitas dessas mulheres assassinadas eram negras, jovens. No levantamento mais recente, 63,6% das vítimas de feminicídio tinham autodeclaração de raça preta ou parda.
A maioria dos crimes ocorreu dentro de casa, cometidos por companheiros ou ex-companheiros.
Em 2023 mais de 1,2 milhão de mulheres foram vítimas de algum tipo de violência (física, psicológica, sexual, ameaça, stalking, tentativa de homicídio) conforme o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
O número de estupros continua assustador: em 2024, foram registrados 71.892 casos de estupro de mulheres, o equivalente a 196 estupros por dia.
Esses dados revelam que, apesar de avanços jurídicos e de visibilidade, vivemos uma escalada silenciosa, perversa e cotidiana de violências. Cada número é uma tragédia, cada registro uma vida interrompida ou marcada pela dor.
Quando investigamos a dinâmica psíquica da violência de gênero, percebemos que não se trata apenas de atos isolados, mas de repetição simbólica de um padrão ancestral. A violência muitas vezes segue o chamado Ciclo da Violência: tensão, explosão agressiva, seguida da chamada “lua de mel” em que o agressor pede perdão, promete mudar e atribui a culpa à vítima. Esse movimento produziu na mulher muitas vezes um “desamparo aprendido”, uma sensação de impotência internalizada, como se denunciar fosse inútil e resistir, impossível.
Do ponto de vista do agressor, há frequentemente uma incapacidade de tolerar a autonomia do outro, uma aversão psíquica à perda de controle, uma fantasia inconsciente de que a mulher é extensão de si mesmo. A cultura patriarcal reforça essa narrativa fornecendo ao agressor o repertório de dominação, reafirmando padrões de gênero e propriedade sobre corpos e afetos.
Para a vítima, em muitos casos, o trauma repetido se instala como crise existencial, fragmentação da autoestima, cicatrizes invisíveis que pedem acolhimento, terapia, sororidade, redes de apoio. Mas para que haja acolhimento real é preciso que falemos, denuncemos, escancaramos.
Nos países onde leis foram criadas para tipificar o feminicídio como crime, onde a violência doméstica começou a ser tratada como violação de direitos humanos, houve avanços simbólicos. Contudo, o simples arcabouço jurídico não resolve o problema — ele existe no espelho da cultura, na normalização da submissão, no silêncio cúmplice, na ignorância intencional.
No Brasil, apesar da existência de leis e políticas públicas, a letalidade continua alta, as denúncias muitas vezes não são suficientes, as vítimas recuam diante de ameaças, da dependência econômica, da retaliação. A justiça se move, mas o medo permanece — e o medo vale vidas.
Acolher e apoiar sobreviventes: oferecer redes de escuta, apoio emocional, acompanhamento terapêutico, espaço seguro para falar: porque cada mulher que sobrevive carrega feridas, medos, perguntas urgentes.
Denunciar e visibilizar: usar a voz, as redes, a escrita, a arte: e incentivar denúncia às autoridades competentes quando houver ameaça ou violência. Denunciar, mas também insistir em apoio e proteção real.
Educar desde a raiz: combater o machismo estrutural em todas as instâncias: famílias, escolas, comunidades. Educar meninos e meninas para a igualdade, para o respeito, para o reconhecimento da alteridade.
Apoiar políticas públicas e instituições de proteção: lutar pela ampliação de casas de acolhimento, centros de apoio à mulher, medidas protetivas, fiscalização: cobrar do Estado estrutura real e eficaz.
Criar espaços de diálogo, arte e reflexão: transformar dor em consciência coletiva, como fazemos no Portal Raízes: acolhendo narrativas, denunciando silêncios, propondo cultura de cuidado, empatia e luta.
A violência de gênero não é um “desvio”, uma “tragédia particular”. É expressão de uma civilização do medo, da dominação, da negação da autonomia feminina. Cada feminicídio, cada estupro, cada agressão física, psicológica, simbólica: revela que a igualdade ainda é promessa e não realidade.
Para além dos dados, para além das estatísticas, há corpos, sonhos, afetos, vozes silenciadas. Há existências que foram negadas. Quando transformamos esses números em rostos, em histórias, em palavras, começamos a chamar pelo que o horror insiste em apagar.
Nós podemos, e devemos, recusar o silêncio. Podemos reconstruir imagens de convivência pautadas na dignidade, na alteridade, no cuidado mútuo. Podemos tecer redes de afeto, solidariedade, combate. Podemos ser a mudança que desejamos, juntas.
Não é suficiente chorarmos pelas vítimas. É urgente vivermos como aliadas da liberdade, da vida, da justiça.
Relatório anual Raseam 2025 (Ministério das Mulheres): dados sobre feminicídios e estupros em 2024. Agência Brasil+2Agência Gov+2
19º Anuário Brasileiro de Segurança Pública — dados sobre feminicídios, estupros, violência doméstica e perfil das vítimas em 2023–2024. MP RS+2UOL Notícias+2
Dados de violência contra mulheres no Brasil em 2023: 1.238.208 mulheres vítimas de algum tipo de violência
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