Em 09 de dezembro, se comemora o Dia Nacional da Criança com Deficiência (CCD) e antes de você dizer que todas as crianças são especiais, que já temos um dia para todas as crianças e que dedicar um dia só para as Crianças com Deficiência é uma forma de discriminação, leia esta carta de uma futura criança com deficiência, antes de nascer, aos seus pais, escrita por uma jovem com deficiência, a partir de suas próprias leituras do mundo, desde á sua infância.

“Olá, meus futuros queridos responsáveis. Nós ainda não nos conhecemos. Eu ainda sou só uma sementinha na barriga da mamãe. Senti daqui o corpo dela estremecer quando leu o resultado positivo do teste. Depois ela deu um sorrisão, é verdade. Mas, à noite, com tanta coisa passando por sua cabeça, ela não conseguiu pegar no sono direito. Eu entendo. Sou uma novidade e tanto na vida de vocês, né?

O engraçado é que quando a minha mãe conta a boa nova para alguém, não importa quem seja, a pessoa sempre a felicita e deseja que eu nasça com saúde e perfeição. O que é perfeição? Fiquei pensando nisso por muito tempo. A vovó bendiz isso o tempo inteiro. E o vovô, como que se sentisse na obrigação de confirmar para não trazer má sorte, emenda uma fala na outra: éissoqueimporta. Outro dia, a moça que trabalha com a mamãe ficou falando de toda a perfeição que vou ter, já que meus pais são perfeitos. E até a médica que passa aquele gel geladinho na barriga da mãe e diz que é para ouvir meu coração, fica me fitando na telinha e reforçando os votos dessa tal perfeição. E é claro, isso é algo que a mamãe também quer.

Mas, cá pra nós, o importante não sou eu? Ao invés das pessoas se preocuparem tanto com como a criança será no futuro, por que não se preocupam em como ela se sente agora. E agora? Eu já existo, obrigada. É verdade que eu mão sei bem se sou fruto de um sonho de vocês ou se vocês foram pegos de surpresa, só sei que estou contente em coabitar a minha existência com vocês. E por mim não importa qual será a cor dos meus olhos, a minha altura, se terei membros ou se serei normotipica ou atípica, por exemplo. Sei que minhas características ou condição de ser quem eu sou, não poderá ser maior que minha essência. Pensando nisso, ocorreu-me a ideia de que os humanos que vieram antes de mim já soubessem disso de cor e sorteado. Mas quando eu nasci, que pena, eles não sabiam.

Os três primeiros parágrafos deste texto, bem que poderia ser a carta de um recém-nascido, não é mesmo? Poderia ser a sua carta para seus responsáveis, poderia ser a minha, caro leitor. É que hoje, neste 9 de dezembro, é o dia das crianças com deficiência e por eu ter sido uma criança com deficiência no inacessível reino de ‘crianças perfeitas’ que quis trazer essa proposta de reflexão: você viveu uma infância normotípica ou atípica? Eu me lembro da minha infância normoatípica, ou seja, uma infância experienciada por uma criança com deficiência, e hoje eu posso dizer, com propriedade, que talvez pudesse ter sido bem mais feliz, não fosse o fato de precisar crescer apesar da ausência da liberdade de ser criança livremente:

“Ju, não corre”; “Ju, você vai cair e se machucar”; “Ju, fica quietinha aqui que eu vou chamar alguém para brincar com você”; “Ju, você pensa que pode fazer essas coisas, mas você não pode”; “Ju, se você se machucar, eu que vou levar a culpa”…  Essas eram algumas das frases que eu costumava ouvir dos adultos ao meu redor. E por quê? Porque ao contrário do que se imagina ser uma criança “normal”, eu era uma criança que usava tampões nos olhos, lupas e até óculos. Medidas adotadas pelo oftalmologista para retardar ao máximo a perda da minha visão por causa de um glaucoma congênito.

Pois é, quando uma criança está para chegar ninguém imagina que ela pode vir acompanhada de um Código Internacional de Doenças (CID). Ninguém adiciona ao enxoval uma bengala longa, instrumento utilizado por pessoas com deficiência visual. Ninguém avalia se as portas da casa são largas o suficiente para permitir a passagem de uma cadeira de rodas ou de um andador.

Quem, em sã consciência, reserva uma gaveta na cômoda para guardar pastas e mais pastas de laudos, exames e receitas médicas do futuro bebezinho lindo? Entretanto, esta é uma possibilidade que deveríamos cogitar sim. E não venha dizer que temos que ter fé, que temos que profetizar a boa saúde e a perfeição, para afastar as inúmeras possibilidades de se ter uma filha ou um filho com deficiência, seja ela física, cognitiva, neurológica ou mental. Mesmo porque eu nunca vi registro histórico de que negar peremptoriamente uma coisa, a impeça de acontecer. Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) afirmam isso, pois 1 em cada 7 pessoas no mundo, declara ter algum tipo de deficiência. Logo, as crianças com deficiência existem e devem ter seus direitos e deveres respeitados. Repito com ênfase em direitos e deveres, sim, porque uma pessoa com deficiência é capaz de falar e agir por si mesma. Minimizar isso, é o que chamamos de capacitismo.

Uma quietude no canto da sala de aula; um choro mais excessivo no parquinho; uma demora maior que a média para se desenvolver… são algumas características que devem ser acolhidas e não ignoradas ou medicalizadas. Criança é criança em qualquer lugar do mundo, independente da sua condição física, cognitiva, mental ou motora. Uma infância saudável se dá pela inclusão, pois esta oferece a criança sem deficiência a chance de conviver com as diferenças e oferta à criança com deficiência a oportunidade de ser e estar no mundo enquanto sociedade.

Se eu pudesse dizer algo para a criança que fui, aos 7 anos, por exemplo, diria que não tem problema algum ela necessitar de um auxílio para correr, que tudo bem se ela cair e se machucar e que perder no joguinho de varetas é normal. Tudo isso faz parte da vida. Errado mesmo são os olhares de gente que não entende a singularidade da vida. Errado mesmo é essa mania que os adultos, por opção ou por ignorância, têm de achar que deficiência é um defeito a ser corrigido, é não apenas um traço a ser aceito. E, o que eu mais queria dizer a criança que eu fui, é que apesar de, a não aceitação das diferenças ser uma barbárie, todo o resto é só pirulitos, chocolates e risadas. A pequena Ju também pode entrar na fila para pular corda no recreio.

Texto de Juliana Santelli, estudante de jornalismo na PUC-GO, que não veio ao mundo a passeio e que enxerga a vida por ângulos nada convencionais. Na falta de algo interessante para dizer, diz aquilo que acredita: os sonhos são como passarinhos: se não os alimentamos, eles voam.






Juliana Santhele é jornalista, jovem, negra, PCD. Colunista do Portal Raízes, ouvinte de podcast nas horas vagas, leitora do que chama a sua atenção. Autora do livro: "Entre Vistas" sobre a maternidade solo na sociedade brasileira pós-moderna (prelo).