Imagine que roubaram o seu celular e você decide fazer um B.O. Agora imagine que o delegado que pegou o seu caso resolve perguntar onde você foi assaltado, que horas eram e se você era conhecido por trocar de aparelho o tempo todo. Depois ele pergunta se você tem certeza de que o assalto realmente aconteceu ou se você não deu o celular ao bandido por vontade própria. Se você então explica que o roubo foi de madrugada e depois de você ter tomado umas cervejas, o delegado decide – por conta própria – que não houve crime algum: você estava na rua e bêbado, quem pode garantir que você está falando a verdade? Ou então, pior, quem disse que você não queria ter sido assaltado?

Isso acontece com quem foi estuprado o tempo todo. Mulheres relatam como são recebidas com desconfiança quando resolvem contar suas histórias para alguém. Pessoas perguntam que roupa ela vestia, onde ela estava, que horas eram, se estava bêbada, se já não havia ficado com o estuprador alguma vez, se deu a entender que queria fazer sexo e até se já teve muitos namorados antes. E essas perguntas podem vir de qualquer um.

9 entre 10 relatos de estupro são verdadeiros, diz pesquisa

Uma categoria muito eficiente em abafar casos de estupro é a figura do “homem bem-sucedido”. Basta ser uma personalidade respeitada que dificilmente a denúncia de violência sexual vai colar. Diversas figuras famosas se viram envolvidas em acusações de violência sexual, como os atores Bill Cosby e Arnold Schwarzenegger, os atletas Cristiano Ronaldo, Neymar Jr, Mike Tyson e Kobe Bryant, e o diretor Woody Allen. O argumento contra pessoas que denunciam celebridades é sempre o mesmo: são indivíduos interesseiros, loucos por fama e dinheiro, que merecem ser demonizados.

Há mais mulheres escondendo estupros do que inventando que foram estupradas

É verdade que nem todas as denúncias de estupro são verdadeiras. Mas é incontestável que a esmagadora maioria é. Uma pesquisa norte-americana que analisou dez anos de dados concluiu que 9 entre 10 relatos de estupro são verdadeiros. Aqui, não há nenhum estudo similar ao conduzido pelo especialista David Lisak nos Estados Unidos – mas a semelhança das dificuldades das sobreviventes para acessar a Justiça nos dois países permite uma aproximação. Lá, segundo Lisak, estima-se que no máximo 36% dos estupros são denunciados. Os percentuais são semelhantes no Brasil. Aqui, a notificação é de 35%, segundo estimativa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

A quantidade de sobreviventes que se mantêm caladas é flagrantemente maior do que a de falsas vítimas que se dirigem às delegacias – e, portanto, de homens que são injustamente acusados. O que força seu silêncio é, em grande parte, a certeza de que serão apontadas como mentirosas e traiçoeiras, até que se prove o contrário – ou, às vezes, mesmo depois disso.

Ironicamente, em uma sociedade guiada por certezas tão inabaláveis quanto irreais sobre o crime de estupro, o comportamento típico de uma pessoa traumatizada é justamente o que faz a vítima ser recebida com desconfiança. No livro-reportagem Missoula: o estupro e o sistema judicial em uma cidade universitária, o jornalista Jon Krakauer narra o caso de uma mulher estuprada por uma visita que invadiu seu quarto e a violentou na mesma cama em que seu marido dormia. Bastava um grito para o companheiro acordar e ajudá-la, mas ela não deu um pio.

Tomadas pelo medo da morte, as vítimas podem, conscientemente ou não, “congelar” para evitar uma violência ainda pior, segundo a psiquiatra Judith Lewis.

Acreditamos que toda mulher estuprada grita, esperneia, pede socorro; na verdade, a maioria tende a ser imobilizada pelo choque inigualável de ter seus corpos brutalmente invadidos. Duvidamos das que mudam detalhes de seus relatos; porém, como explica Lewis, a inconsistência é o padrão – como a memória de uma criança pequena, as lembranças traumáticas são processadas sob a forma de imagens e sensações, e não sob uma narrativa verbal. Esperamos que, depois do abuso, corram de seu agressor; mas, quando ele é um conhecido – como em 70% dos casos no Brasil, segundo o Ipea –, tendem a interagir normalmente com ele. É um mecanismo de defesa: inconscientemente, fingem que nada aconteceu, porque assimilar que alguém em quem confiavam as atacou dessa forma as deixaria sem chão.






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