Ao lançar seu olhar psicanalítico, histórico e profundamente humano sobre a trajetória da família, Élisabeth Roudinesco, uma das maiores pensadoras contemporâneas, nos convida a refletir sobre a aparente desordem que marca as relações familiares na atualidade. Seu livro “Família em Desordem” não é um lamento sobre um suposto colapso dos valores, mas uma análise lúcida e sensível sobre os processos de transformação que permeiam a vida privada e os laços afetivos.
Desde os primórdios da civilização, a família jamais foi uma estrutura rígida e imutável. Ao contrário, ela sempre se adaptou às circunstâncias econômicas, culturais, religiosas e políticas de cada época. O modelo da família nuclear, heterossexual, patriarcal — pai provedor, mãe cuidadora e filhos — não é natural nem universal, mas fruto de uma construção histórica, especialmente do século XIX.
Roudinesco nos alerta: a desordem que tantos temem é, na verdade, o movimento vital de uma sociedade que caminha em direção à ampliação de direitos, de escolhas e da liberdade subjetiva. O declínio do patriarcado não representa a ruína da família, mas sua abertura para formas mais plurais, horizontais e amorosas de organização dos vínculos.
Do ponto de vista psicanalítico, a autora é categórica: não é a forma da família que estrutura o sujeito, mas a transmissão simbólica. A criança não adoece porque tem duas mães, dois pais, ou porque vive com apenas um dos genitores. Ela adoece quando há rupturas na inscrição simbólica, na função da lei, do cuidado, da palavra, do desejo e da responsabilidade.
Em tempos de avanço das tecnologias reprodutivas, de casamentos entre pessoas do mesmo sexo, de famílias monoparentais e recompostas, Roudinesco propõe uma reflexão que nos atravessa como sociedade: o que define uma família não é a biologia, nem a norma, mas o desejo, o amor e a responsabilidade de sustentar a função de transmissão psíquica e afetiva.
A autora desconstrói os discursos apocalípticos que associam as novas configurações familiares à decadência moral. Ao contrário, ela afirma que a desordem atual representa a libertação de antigos grilhões — do patriarcado opressor, da autoridade violenta, da naturalização das desigualdades de gênero, de raça e de orientação sexual.
A psicanálise nos ensina que o sujeito não se constitui na rigidez dos modelos, mas na travessia pelo desejo, pelo interdito e pela linguagem. A criança precisa menos de um pai homem e de uma mãe mulher, e mais de uma referência simbólica que lhe assegure:
- Que há um lugar para ela no desejo dos outros;
- Que há uma lei que organiza o laço social, que coloca limites, mas também oferece sentido e pertencimento;
- Que ela é amada, cuidada e reconhecida como sujeito em desenvolvimento.
Roudinesco nos oferece, nesta obra, um caminho para desfazer o medo e a culpa que ainda rondam muitos debates sobre família, infância e sociedade. Ela nos convoca a abandonar o saudosismo de um passado idealizado — que, na realidade, sempre foi marcado por opressões e violências invisibilizadas — e a abraçar a potência criativa das novas formas de amar, de cuidar e de transmitir vida psíquica.
Se há algo que permanece, mesmo em meio à desordem, é a necessidade fundamental que todo ser humano tem de ser inscrito na história de alguém, de ser nomeado, reconhecido e desejado. Isso, sim, é o que funda uma família no sentido mais pleno e amoroso do termo.