(…) Uma das melhores coisas da nossa vida de tão prosaico século, é o amor, o grande e discutido amor, o nosso encanto e o nosso mistério; as nossas pétalas de rosa e a nossa coroa de espinhos. O amor único, doce e sentimental da nossa alma, o amor de que fala o poeta Júlio Dantas: “uma ternura casta, uma ternura sã, de que o peito que o sente é um sacrário estrelado”; o amor que é a razão única da vida que se vive e da alma que se tem; a paixão delicada que dá beijos ao luar e alma a tudo, desde o olhar ao sorriso, — é ainda uma coisa nobre, bela e digna! Digna de si, do seu sentir, do seu grande coração, ao mesmo tempo violento e calmo.

Esse amor que “em sendo triste, canta, e em sendo alegre, chora”, esse amor há-de senti-lo um dia, e embora morto, perfumar-lhe-á a alma até à morte, num perfume de saudade que jamais o tempo levará! No entanto, o casamento é brutal, como a posse é sempre brutal, sempre! O melhor beijo, o beijo mais doce, aquele que se não esquece nunca, é aquele que nunca se deu, disse-o um dia um poeta, e eu creio. Só para as mulheres, as tais mulheres mais animais que espirituais, é que o casamento não é a desilusão de sempre.

Há uma revolta latente na mulher que vai contra tudo o que há de delicado nela. E quando ela se ofende e se indigna com as afrontas sofridas, o que afinal faz parte da natureza humana, mas não há homem, por superior que seja, que compreenda esta revolta e que a desculpe! Em tudo eu penso exatamente o mesmo que a minha querida Júlia; não há nada, tanto para os homens como para a mulher, que valha a liberdade tanto alma como de pensamento.

É o casamento um grilhão de flores e risos? Pode até ser, mas é sempre um grilhão.  Ria, pois, e cante com a sua bela alegria, ame doidamente alguém, mas nunca abdique nem uma só das suas graças, nem uma só das suas ideias que lhe fazem vincar a fronte às vezes com uma pequenina ruga de capricho e insolência; não ajoelhe nunca, porque está nisso o nosso grande mal, o nosso profundíssimo erro; nós nos abdicamos de nossos papéis, de nossos sonhos e vontades em proveito deles, e depois as consequências são as paixões que devastam uma vida inteira por criaturas que não se dignam a nos dar, por último, sequer um olhar de compaixão.

O melhor de todos os homens não vale um fanatismo, creia-me. E embora a nossa alma, com essa ânsia de amor, de ternura que canta sempre em nós, nos impele à dedicação, se assim fizer-lhes, que eles o não saibam nunca, que não suspeitem sequer. Pois ao Abdicar um grau da nossa realeza, teremos de descer sempre, sempre, até ao fim. Não é verdade isto?

Texto de Florbela Espanca  – Extraído de “Correspondência – 1916”






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