Vivemos em tempos em que o discurso sobre amor e cuidado com as crianças é cada vez mais presente. Mas, paradoxalmente, como sociedade, presenciamos uma série de comportamentos e omissões que traem, de forma profunda, esse compromisso declarado com a infância. Como terapeuta e orientador parental, é impossível não observar com preocupação crescente o quanto estamos falhando na tarefa mais essencial de todas: proteger, educar emocionalmente e cuidar com dignidade das crianças e adolescentes.
Essas falhas nem sempre se apresentam de maneira escandalosa. Muitas vezes, começam nos detalhes cotidianos, no despreparo emocional dos adultos e na ausência de autocrítica sobre o modelo de paternidade e autoridade que ainda sustentamos.
Tudo começa quando a frustração de um adulto se transforma em agressão. Recentemente, em plena festa junina escolar, um pai agrediu fisicamente uma criança que não era seu filho, após um desentendimento entre os pequenos. Em vez de mediar, acolher ou ensinar, a resposta foi a violência. E o que se ensina com esse gesto? Que o mais forte impõe, e o mais fraco se cala?
Ausências, Silêncios e Violências Disfarçadas
Depois, avançamos para situações mais amplas e silenciosas. Pais que, ao se separarem da mãe, também se afastam emocionalmente dos filhos. Reduzem o papel paterno à obrigação formal ou simplesmente desaparecem do mapa afetivo da criança. Como se o fim do casamento também dissolvesse a responsabilidade de amar, cuidar e acompanhar um filho — que continua a existir, mesmo com o rompimento do vínculo conjugal.
Pior ainda é quando essa ausência se transforma em abuso emocional. Relações em que o medo substitui o afeto, o controle se disfarça de cuidado, e a chantagem afetiva e o terror psicológico minam a autoestima e a segurança dos filhos. Ambientes nos quais os conflitos conjugais são escancarados diante da criança, que passa a viver como espectadora do desequilíbrio dos pais.
A violência também se manifesta na forma da rejeição. Ainda hoje, é possível ver pais expulsando filhos de casa por sua orientação sexual, abandonando-os emocionalmente por não se encaixarem nos moldes esperados. Filhos e filhas LGBTQIAPN+ ainda crescem ouvindo que são uma “vergonha para a família”, como se o amor tivesse prazo de validade ou cláusulas de exclusão.
E há a violência que não pode mais ser ignorada: o abuso sexual dentro da própria casa, cometido por pais, padrastos ou figuras parentais próximas. Essa é, talvez, a mais brutal das traições possíveis — a violação da infância no espaço que deveria ser o mais seguro de todos. Casos assim não são meros desvios, são gritos sufocados de um sistema familiar que se rompeu por completo. Crianças abusadas por seus cuidadores crescem carregando feridas invisíveis, desconfiando do amor, do toque, do afeto, de si mesmas. E, muitas vezes, a sociedade silencia — por vergonha, por medo ou por conivência.
Nos casos mais extremos, como vimos recentemente noticiado, a violência atinge seu limite: o assassinato de uma mãe cometido pelo próprio pai, que ainda esfaqueou a filha. Quando um cuidador se transforma em algoz, falhamos como comunidade, como cultura e como humanidade.
O Risco da Indiferença e o Convite à Transformação
Nada disso é isolado. São expressões diferentes de um mesmo problema: um modelo de masculinidade autoritária, uma concepção equivocada de paternidade, uma cultura que ainda tolera abusos e silencia dores infantis. Trata-se de uma crise de cuidado, de valores e de humanidade.
Precisamos, com urgência, reaprender a cuidar. Com presença real. Com escuta. Com firmeza ética e emocional. Com limites que educam, não que machucam. Com amor que acolhe, não que condiciona.
Não há futuro possível sobre a base da violência. O que uma geração cala, a próxima carrega no corpo e na alma. E talvez o maior gesto de amor que possamos oferecer às crianças hoje não seja prometer que o mundo será melhor, mas agir, desde já, para que o lar seja.
Mas o mais alarmante talvez não seja apenas o que está acontecendo, e sim o que estamos deixando de sentir. Essas notícias já não nos chocam mais. Casos de abandono, violência, abuso e até assassinatos de mulheres e crianças tornaram-se frequentes nos noticiários e nas redes sociais, e nossa reação muitas vezes é de cansaço, de indiferença — ou apenas de rolar a tela para a próxima tragédia.
E isso é perigoso. Muito perigoso. Porque, quando deixamos de nos assustar, começamos a normalizar. E, quando normalizamos, abrimos espaço para que o inaceitável se torne cotidiano. Precisamos manter vivo o nosso espanto, porque ele é sinal de que nossa humanidade ainda pulsa. Precisamos nos incomodar — pois só assim podemos transformar.
Texto de Cid Paz Vieira Filho, orientador parental, formado em psicologia, direito e pós-graduado em parentalidade, é escritor e palestrante. Coautor dos livros Pai Presente, Bússola Familiar e O Futuro das Novas Masculinidades, atua auxiliando famílias, educadores e jovens a desenvolverem diálogo, conexão, respeito e responsabilidade.