Há cem anos, no dia 10 de dezembro de 1920, nascia Clarice Lispector, jornalista, contista, romancista, ensaísta e artista plástica, considerada por muitos como um dos maiores nomes da literatura brasileira do Século XX.

Com seu romance inovador e com sua linguagem altamente poética, sua obra se destacou diante dos modelos narrativos tradicionais. Seu primeiro livro, “Perto do Coração Selvagem” recebeu o Prêmio Graça Aranha.

Clarice Lispector tinha o hábito de dormir cedo, acordar de madrugada e ficar sentada na sua sala pensando, fumando e ouvindo a Rádio Relógio, acompanhada apenas de seu cachorro, Ulisses. Nesses momentos de solidão, nasceram muitas de suas obras, que, depois, ela escreveria com a máquina de escrever apoiada sobre as pernas.

Em “Morte de Uma Baleia”, crônica publicada em 1968, Clarice Lispector manifestou o seu repúdio à ideia da morte. Mas admitiu já a ter experimentado um sem número de vezes – no caso, não a do corpo, claro, mas a da alma. “Morri de muitas mortes e mantê-las-ei em segredo até que a morte do corpo venha, e alguém, adivinhando, diga: esta, esta, viveu”. Na sequência, prossegue: “Porque aquele que mais experimenta o martírio, é dele que se poderá dizer: este sim, este viveu”.

No dia 9 de dezembro, Clarice partiu nos braços daquela a quem não dedicava um sentimento menos brando que o “ódio” (palavra por ela empregada). Foi embora um dia antes de completar 57 anos. Mas não sem deixar um legado profícuo e já reconhecido à época, e que segue arregimentando mais e mais admiradores – não só no Brasil, mas mundo afora. Gente que devora sua plural escrita com a indefectível certeza: “Esta sim, esta viveu”.

E é à “vida vivida” dessa ucraniana batizada como Chaya Pinkhasovna Lispector que o Brasil, país para onde ela veio com apenas dois anos de idade, dedica, nesta semana, um sem número de merecidas homenagens. E não pelo aniversário de morte. Basta fazer as contas para entender o motivo, e a matemática, aqui, é elementar: 43 anos de morte, 57 de vida.

“O que estou fazendo aqui a escrever? Escrevo sentada junto de uma janela aberta. Do alto do meu ateliê escrevo esse fac-símile de livro, o livro de quem não sabe escrever”. 

Disse ela em determinado trecho do romance Água viva, em que a autora se confunde com a personagem, uma solitária pintora que se lança em infinitas reflexões sobre o tempo, a vida e a morte, os sonhos e visões, as flores, os estados da alma, a coragem e o medo e, principalmente, a arte da criação, do saber usar as palavras num jogo de sons e silêncios que se combinam, a especialidade da própria Clarice.

Para celebrar o centenário de Clarice Lispector selecionamos 10 trechos do livro “Água Viva” 

1) Meus dias são um só clímax: vivo à beira.

2) Esta é a vida vista pela vida. Posso não ter sentido, mas é a mesma falta de sentido que tem a veia que pulsa.

3) Que mal porém tem eu me afastar da lógica? Estou lidando com a matéria-prima. Estou atrás do que fica atrás do pensamento. Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo não deixando, gênero não me pega mais. Estou em um estado muito novo e verdadeiro, curioso de si mesmo, tão atraente e pessoal a ponto de não poder pintá-lo ou escrevê-lo.

4) Ouve-me, ouve o silêncio. O que eu te falo nunca é o que te falo e sim outra coisa. Capta essa coisa que me escapa e no entanto vivo dela e estou à tona de brilhante escuridão. Um instante me leva insensivelmente a outro e o tema atemático vai se desenrolando sem plano mas geométrico como as figuras sucessivas em um caleidoscópio.

5) Tenho medo do domingo maldito que me liquifica.

6) Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada.

7) O que te direi? te direi os instantes. Exorbito-me e só então é que existo e de um modo febril. Que febre: conseguirei um dia parar de viver? ai de mim que tanto morro. Sigo o tortuoso caminho das raízes rebentando a terra, tenho por dom a paixão, na queimada de tronco seco contorço-me às labaredas. À duração de minha existência dou uma significação oculta que me ultrapassa. Sou um ser concomitante: reúno em mim o tempo passado, o presente e o futuro, o tempo que lateja no tique-taque dos relógios.

8) O mundo não tem ordem visível e eu só tenho a ordem da respiração. Deixo-me acontecer.

9) De que cor é o infinito espacial? é da cor do ar. Nós – diante do escândalo da morte.

10) Renuncio a ter um significado, e então o doce e doloroso quebranto me toma. Formas redondas e redondas se entrecruzam no ar.






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