A finitude precisa ser um assunto tratado desde á infância. Compreender, aceitar e ressignificar o fim da vida, seja ele como e quando vier. A morte, essa coisa inevitável, deveria ser enfrentada com menos sofrimento. Mas nós não somos aparelhados para não sofrer quando ela, a morte, nos convida para uma conversa. Assim, diante do diagnóstico de câncer, passamos pelos estágios do luto, não porque estamos mortos, mas porque acreditamos que deixaremos de viver. E o nosso luto é um auto-luto da vida que vivemos, da vida que não vivemos, da vida não poderemos mais viver.

“Arnaldo” é um professor aposentado de 67 anos sem histórico médico, muito sadio, acabara de se aposentar e fazia ótimos planos para curtir sua vida, mas num repente precisou ser encaminhado para clínica psicoterapêutica para tratar a tristeza e a ansiedade que lhe acometeu ao ser diagnosticado com câncer no pulmão.

“Não estou pronto para morrer”

“Não estou pronto para morrer”, disse o Arnaldo, depois do diagnóstico devastador. A notícia o pegou desprevenido, pois os únicos sintomas que experimentou foram tosse e fadiga progressiva. Além dessas queixas, não apresentava problemas médicos anteriores, sempre se manteve comprometido com um estilo de vida saudável e fazia exames físicos regulares.

Arnaldo não tinha histórico de tabagismo, consumo de álcool ou qualquer outra substância. Ele se sentiu entorpecido quando ouviu o diagnóstico pela primeira vez, porque foi dominado por uma série de emoções fortes: descrença, raiva, medo, ansiedade e tristeza. O seu plano de aposentadoria agora precisava ser suspenso para que ele pudesse se concentrar no tratamento do câncer. Logo ele que já havia sofrido uma dor tremenda alguns anos antes, após a morte de sua esposa, também devido ao câncer.

Ele iniciou quimioterapia e radioterapia logo após o diagnóstico. Durante os estágios iniciais do tratamento do câncer, ele teve dificuldade em lidar com a carga do tratamento e relatou piora dos sintomas de ansiedade. Foi afetado não só pelo diagnóstico de câncer, mas também pelo tratamento e seus efeitos colaterais, que agravaram sua depressão e ansiedade, que diminuíram sua qualidade de vida e agravaram sua solidão e o seu isolamento social.

Além da intervenção farmacológica para depressão e a ansiedade, ele foi assistido por um psicoterapeuta para trabalhar em técnicas de relaxamento, exercícios de respiração profunda e terapia cognitivo-comportamental.

O auto-luto em pacientes com câncer

O luto não é só quando alguém morre e sofremos por isso. Toda perda de algo que estimávamos é um luto. Logo, um diagnóstico de câncer, traz consigo o estigma de uma condenação á morte. Por isso, os pacientes com câncer passam por todos os estágios do processo de luto.

As pessoas com câncer enfrentam uma série de questões desafiadoras, incluindo desmoralização, isolamento, sofrimento devido ao tratamento, ansiedade e depressão. Algumas questões estão relacionadas à perda de controle e dignidade, enquanto outras decorrem de problemas relacionados à qualidade de vida. Fumantes, ou indivíduos que sentem que o câncer é resultado de comportamentos negativos de sua própria autoria, muitas vezes experimentam vergonha e depressão pior.  Na terapia, o medo da mortalidade e do declínio psicossocial precisa ser abordado. Os estágios do luto (negação, raiva, barganha, depressão, aceitação) também devem ser destacados e trabalhados, embora os estágios não precisem ocorrer em uma ordem limpa e previsível.

Para Arnaldo era difícil imaginar um momento pior para ele receber a notícia desse diagnóstico devastador porque, após décadas de trabalho duro, ele estava ansioso para passar os anos curtindo a aposentadoria viajando. Como outros pacientes, o Sr. Arnaldo ficou em choque (os estágios de negação / choque do luto). Ele agora tinha que enfrentar a terrível transição de antecipar anos com atividades alegres para navegar nas águas desconhecidas de uma doença mortal e de um tratamento difícil. Arnaldo experimentou uma desmoralização semelhante ao conceito de desespero do psicanalista alemão Erik Erikson, no estágio final de sua vida, onde ele sentiu parcialmente arrependimento pela vida que viveu e o sentimento de desesperança .

Enfrentando uma doença terminal, Arnaldo sentiu-se arrasado e em desespero; ele agora acreditava que tinha apenas uma pequena chance de ser capaz de fazer as coisas significativas que havia trabalhado e planejado para toda a sua vida. Embora tenha refletido sobre a vida que viveu com orgulho, tendo criado 2 filhos bem-sucedidos, ele se arrependeu por não ter feito o suficiente do que achava que lhe traria felicidade (o estágio de depressão do luto). Durante o curso de seu tratamento de câncer, Arnaldo constantemente se encontrava em um cabo de guerra entre a esperança de uma recuperação completa e, em suas palavras, “fazer as pazes” com a vida que levou e se entregar à morte.

Por que comigo?

Refletindo sobre sua vida, Arnaldo sentiu que ser diagnosticado com câncer de pulmão era injusto para ele, já que nunca teve problemas médicos e se comprometeu com um estilo de vida saudável (o estágio da raiva do luto). Ele nunca fumou, bebeu álcool ou abusou de qualquer substância. Como a maioria dos pacientes com câncer de pulmão, o Sr. Arnaldo foi diagnosticado quando o câncer estava em estágio avançado porque seus primeiros sintomas – tosse seca e fadiga – eram inespecíficos e dispensados ​​sem investigação adicional. Ele também relatou sentir-se culpado pela possibilidade de se tornar um fardo para a namorada, que também tinha doenças crônicas. A autocompaixão é uma preocupação comum que precisa ser tratada no planejamento do tratamento multimodal, pois há um reconhecimento crescente de que a saúde do cuidador e a saúde do paciente são interdependentes.

Durante sua primeira consulta com a psiquiatria, Arnaldo reiterou com lágrimas que havia economizado dinheiro durante toda a vida para a aposentadoria e planejado viajar muito nos últimos anos significativos de sua vida. O acréscimo da psicoterapia foi essencial para orientar o paciente nas fases do luto. Embora o câncer de pulmão seja o câncer de ocorrência mais frequente e a principal causa de morte por câncer em homens, é essencial ajudar os pacientes a perceber que muitas ocorrências de câncer não levam à morte (o estágio de aceitação do luto). Ele estava psicologicamente atormentado pelo medo constante da morte , especialmente após o diagnóstico e nos estágios iniciais do tratamento.

À medida que o tratamento do câncer de pulmão progredia, Arnaldo começou a se preocupar mais com sua situação financeira, já que suas economias para a aposentadoria foram rapidamente esgotadas pelas contas médicas. Ele ficou ressentido porque uma parte significativa de suas economias para a aposentadoria havia sido drenada e ele não podia ajudar a namorada. Essas preocupações aumentaram sua ansiedade, a depressão e consequentemente abalou a sua esperança no tratamento.

 A depressão em pacientes com câncer leva a taxas mais altas de readmissões

Durante o curso do tratamento da depressão, era importante focar na melhora do humor de Arnaldo, com base nos sintomas de depressão de base psicológica, em vez de nos neurovegetativos relacionados ao câncer de pulmão, como fadiga, dor, dispneia, fraqueza, insônia e fraqueza concentração. Distinguir os sintomas físicos dos psíquicos, é essencial no tratamento do câncer.

Os sintomas de depressão que foram considerados marcadores de resposta à depressão incluem sentir-se desesperançado, desamparado ou desmotivado; choro fácil, irritabilidade, autocensura, isolamento social e mudança de humor. A qualidade de vida do paciente e outros elementos significativos de sua vida também foram importantes a serem considerados no acompanhamento do tratamento da depressão e da ansiedade. Ajudar o humor do paciente tem um duplo propósito, tanto como um sucesso no tratamento de saúde mental quanto uma forma de melhorar o sistema imunológico do paciente e melhorar a adesão ao longo programa de tratamento do câncer. A depressão em pacientes com câncer leva a taxas mais altas de readmissões.

Além do trauma psicológico, passar por 20 meses de radiação e quimioterapia foi uma provação para Arnaldo, que lutava contra a má qualidade de vida devido às fortes dores induzidas pelo tratamento. Como a dor é uma experiência multidimensional e complexa, era imperativo explorar a dimensão psicoespiritual de seu sofrimento durante as visitas de acompanhamento. Discutir sua dor, medo, preocupação, perda de autonomia e dignidade ajudou a aliviar a angústia de Arnaldo. Felizmente, ele não relutou em falar sobre essas preocupações.

E como essa história terminou?

O melhor manejo do câncer de pulmão e do sofrimento do tratamento requer uma coordenação de cuidados precoce e abrangente envolvendo uma equipe multidisciplinar para lidar com o sofrimento físico, as necessidades espirituais, os estressores psicossociais, as necessidades nutricionais e o sofrimento psicológico. O objetivo é fornecer controle adequado dos sintomas físicos, suporte psicossocial e gerenciamento da ansiedade e depressão.

Depois de perseverar por quase 2 anos no tratamento do câncer, Arnaldo se sentiu extremamente aliviado quando o PET-scan não mostrou nenhuma evidência de doença ativa. As tomografias subsequentes também foram negativas. Mais tarde, Arnaldo continuou a quimioterapia oral de manutenção. Enquanto ele se sentia aliviado e esperançoso para o futuro. Com uma boa resposta ao tratamento do câncer, o auto-luto do Arnaldo praticamente se resolveu após completar o tratamento com sucesso: corpo e mente recuperados.

Da redação de Portal Raízes. Editado a partir do relato de um paciente da Clínica Comunitária de Psiquiatria do Sistema de Saúde Harris, Houston, Texas, publicado no Psychiatric Times. As informações contidas neste artigo são apenas para fins informativos. Se você gostou do texto, curta, compartilhe com os amigos, e não se esqueça de comentar. Pois isto contribui para que continuemos trazendo conteúdos incríveis para você. Siga o Portal Raízes também no FacebookYoutube e Instagram.






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